segunda-feira, 14 de junho de 2021

SETe

Depois de dias resistindo, Wiliam aceitou missão que o destino lhe impôs. Quem o ignorou no dia anterior não pôde fazer o mesmo na terça, quando a gradação do azul chamou atenção dos transeuntes, que viam o esboço na parede e detinham-se, impressionados. Na quarta-feira, descobriu-se: o azul era céu, e o amarelo, o chão. Começou então a jornada rumo ao final feliz.

A dor física, porém, já evoluía, juntamente com a evolução do trabalho do molambo'mano, que sofria em expressões terríveis. Foi quando alguém resolveu ajudar, sob olhares de reprovação de todos que olhavam felizes, mas não interferiam. Ele sorria e era horrível. Esquelético, desdentado, fedorento, e desmoralizado pelas surras aplicadas pela vida e por homens maus, ele expunha a boca sem dentes, em clara expressão de dor, era impressionante a ponto de constranger.

Estava claro que desenhando o jovem piorava o fio de saúde que lhe restava não se sabia como. Mas, a empolgação da platéia era o que o fazia seguir firme com as mãos sobreviventes às pancadas de pá com concreto seco. Seguia pintando, fazendo nascer com as mãos arrebentadas pela surra que lhe tirou, além dos dentes, o direito do lado direito endireitar. Lembrava que acordou triste do coma, e desde que chegou ao bairro (dezessete de abril) sabia que morreria logo. O querido tio o trouxe sem lhe dizer uma nada no trajeto, deixando-o sentado no banco do beco. Já esperava pelo ponto final, nem quis entrar na casa que a família abandonou.

Minutos depois, barulheira orquestrada: corre-corre, porta fechando, latidos, muitos latidos. Acústica conhecida, coração veio na boca. Latidos cada vez mais perto. Era a hora, hora do destino se cumprir, desespero tomou conta. Mas, era hora de arcar com as conseqüências do tropeço dado há anos.

Baixou a cabeça, aceitou. Então, em menos de um segundo tudo estava diante dos olhos. O primeiro ato: a Cadela, o rato, e a caçada. A cadela-cão, Poli valente, repentinamente, se arma pronta para o ataque, e golpe surpreendente. Vindo de outro lugar. Surge um guerreiro; uma lança; homem-criança, rouba a cena. O rato já estava morto. Ratos também morrem dignamente...

A partir daquele momento tudo mudou, a cena teatral hospedou-se em sua mente. Passaram-se dias e aquilo evoluía, cabeça doía, não dormia. Sentiu-se num labirinto onde era prisioneiro daquela imagem, presa em sua cabeça, reprodução cíclica, mostrada sempre mais nítida quando estava com os olhos fechados. Ratos também morrem dignamente...

Depois de três dias e noites relutando, envergonhado pela inveja que sentia, ele saiu para rua, alienado do mundo e começou o desenho na busca desesperada de encontrar a paz. Fotografaria a imagem que por três dias torturou-lhe o espírito e lhe trouxe consciência: ratos também morrem dignamente. Sonho e pesadelo, tudo na parede, no final da sexta-feira. Os pincéis finos passavam a arte final do falso canhoto, que já sangrava pela boca a cada tosse.

Ao final do entardecer via-se na parte mais baixa da parede o desenho da lua, amarelada. Notava-se a cabeça de cachorro, na extrema esquerda, e, mais ao centro, um garoto fantasiado de cavaleiro, montando um cavalo de pau, desfere um golpe com o braço direito. A proteção plástica do garrafão de vinho era o elmo do guerreiro, e a capa rubra era um saco de alinhagem.

Pela direita, o monstro, dentes enormes e pernas escamosas, recebia o golpe. O público, que esperava pelo dragão, admirou-se ao ver o roedor cinzento no lugar do tradicional vilão da peça. Monstro que soltava, no lugar de sangue, explosões em verde vivo.

Lamento era ter que esperar pelo socorro do dia seguinte para ver o desenho mais nitidamente e confirmarem suas expectativas. No outro dia se confirmaria que sim, se tratava de um rato, mas, por causa da de mais cedo, essa não foi nem de longe a fofoca mais quente. Segundo boca a boca narrava, alguém viu um rapaz deitado no chão do beco, ainda na escuridão da madruga. Aproximou-se dele e percebeu que, além de não atender aos chamados, parecia não respirar. Uma ambulância foi chamada, e, feitos exames preliminares, contatou-se que nada mais podia ser feito. Uma carteira foi encontrada, e um rapaz, mostrando o verso dos documentos aos colegas, pediu atenção.

— Faz aniversário hoje, o miserave. Vinte e três de abril. Trágico!

Paralisados, todos se mantiveram detidos diante do palco montado sob a ação dos primeiros raios de sol que traziam a luz da manhã ao mesmo tempo em que desvelavam a obra autobiográfica, a tela em homenagem ao santo guerreiro.

Novamente, olharam o falecido pintor, nascido e renascido na mesma data. Agora, sob luz percebia-se que ele sorria. Sim, sorria e era lindo, porque aquele era o sorriso dos que fazem a passagem sem dor. Set montado em sete atos, final feliz, missão cumprida. Quem viu, confirmou: sim, era possível morrer dignamente.