quinta-feira, 8 de julho de 2021

O Vitorioso

Dez horas e finda mais um dia de trabalho, mais um dia difícil. E o anterior tinha sido o pior de todos. A capacidade de transformação é algo com a qual não se deve brincar. Nem das coisas, nem das pessoas. Nada é ruim o suficiente a ponto de não poder piorar. Sim, o subsolo do fundo do poço existe, infelizmente.

O menino, homem recém-formado naquele momento, encontrava-se esgotado passado mais um dia de trabalhado. Condição inimaginável, dias antes. Era só um filho, comum. Todo absurdo aconteceu com a mesma velocidade do sopro repentino que, em dois tempos, arrebatou a vida do seu pai. A madrugada do último dia de março chegou e trouxe para ele, em seus primeiros segundos, a pior grande mentira que já ouvira: estava tudo bem, era hora de seguir em frente.

Como assim, tudo bem? Como seguir em frente? Não interessava. Ninguém respondia. O pai foi enterrado ainda no primeiro de abril, com sol alto. E, no dia seguinte, as cobranças já rondavam a casa, como tubarões rodam barcos. O que vai fazer?

Era hora de encarar dificuldades, assumir obrigações. Roupa de menino não dá em homem. A hora de ser homem chegou. E não de ser qualquer homem, o homem da casa. Cedo demais. Mas chegou, a provação terrível, que já começou com a tarefa de ter que informar à mãe, o que ouvira do medico, no corredor do hospital. Acordar a mãe, para Jorge Vitor, já foi desumano. Informá-la sobre o ocorrido foi um verdadeiro pesadelo...

Não ter para si um ombro, e ter de dar, para sua mãe, o seu foi desolador até para a médica testemunha única do evento. O ombro, ontem bengala do pai; hoje, bengala da mãe desolada. Pior momento da emancipação precoce. Com certeza, Deus não estava ali. Tempo que passa. Paciência. Deus sabe de todas as coisas. Dali ao cemitério. E acabou-se.

O pai se foi. Agora alguém tinha que fazer a engrenagem girar. Essa condição se maturou com o avanço avassalador da doença do pai, depois de descoberta. Três meses em três palavras, e sem vírgula. Assim iniciou e findou a vida do chefe da casa. Engraçado, o ser humano. Nove meses para nascer, estalo de dedos, para morrer. Mas, por mais triste que fosse para Jorge Vitor enterrar o pai num caixão doado na tarde do dia da mentira, essa ainda não era a dor maior. Pior mesmo foi perceber se chorasse no quarto, choraria em vão. E foi assim que Jorge Vitor aprendeu que alguém tinha de fazer alguma coisa. E esse alguém era, naturalmente, o filho mais velho.

Passar a ser acionado pela mãe o fez deduzir que algo mudou. Jorge Vitor era o homem da casa. Era tímido, porém, logo aprendeu logo a falar alto, e para estranhos. Uma transformação em vendedor ambulante era, meses antes, impensável. Em uma semana a coisa mudou. Vestir o colete e apostar sorte na boa vontade dos motoristas foi desafiador. Conseguir digerir situações e transformações exigiu dele o domínio de habilidades inimagináveis.

E, para Jorge Vitor, ser o homem da casa; trabalhar para ajudar em casa, essa com certeza não foi a sua pior tarefa. Para ele nada, nada, se comparava à segunda tarefa de adulto: cuidar do irmão caçula.

Ele lembrava que ouvia os avisos da avó. "Vem aí uma espoleta..." E a profecia se cumpriu. A casa mudou para sempre, depois do nascimento de Jorge Levi, que ninguém detinha. Ninguém vírgula: "só pai. O pai, com as histórias de Caipora e num sei quê. Só aquilo segura o peste, nada mais! Só aquilo ali mesmo..." Assim pensou enquanto voltava para casa. Pensou profundamente, refletiu, caiu em si. E foi caindo, mais e mais, cada vez mais. Até que se, amargamente, corrigiu: "Se só pai... Então... Ninguém mais segura Levi..."

O problema estava em Levi, todo emoção, que testemunhou por três infinitos dias a derrocada do pai herói, a tormenta na casa. Era esse garoto que Jorge Vitor sabia que, em seu íntimo, não aceitava ter acabado a graça de sua vida. A seriedade que se arrumava silenciosa pela manhã e saía. Ao trabalho. Carregar materiais de construção com o cavalo. Voltar ao meio dia, agora mais falante, para almoçar. E volta à labuta. O herói que, de vez em quando, ia buscar na Escola. O sábio das historinhas repetitivas, contadas ao final do dia. Era a perda desse homem que era inaceitável para o menor. Aquilo não podia ser. Era uma mentira! Tinha que ser! Um primeiro de abril.

Sim. Era, aquilo, de fato, um primeiro de abril. Mas, não, infelizmente não. Era tudo verdade. A pior. A pior verdade do mundo acontecida, irônica e infelizmente, nas primeiras horas do dia da mentira. Sem sentido. Inaceitável. Qual é a criança que aceita a morte de quem a põe para dormir de bom agrado? Jorge Vitor sabia que, embora o seu irmão mais novo mostrasse um entendimento inicial assustador sobre o acontecimento, aquele coraçãozinho de oito anos tinha chagas abertas.

Por isso sabia que mais difícil do que encarar a indiferença de estranhos aos seus problemas diários no coletivo seria ter de estar pronto para segurar as pontas quando a bomba estourasse. A bomba estourou. Passado trauma, mau comportamento aflorou em casa. A cada dia, um limite novo, estabelecido pela mãe no dia anterior, às vezes pela manhã, era ultrapassado. Na escola, uma semana pós-tragédia, Levi deixou de ser vítima. A paciência e a simpatia da professora acabam. Menino figurava entre os piores da turma. O clima era muito ruim...

Jorge Vitor não sabia o que iria protagonizar porque até ali o dia era comum. Nada de especial. Por isso acreditava que também seria uma noite comum. Em instantes chegaria em casa exausto, e tudo iria se repetir. A mãe estará em casa. Ela interromperá o que estiver fazendo assim que vê-lo abrir a porta. Primeiramente ela iria recebê-lo, e depois iria iniciar-se a passar as informações do dia, como fazia com o pai.

A mãe reclamaria da falta de água primeiramente. Isso aconteceria logo que ele destampasse da porta, e se estenderia pelo momento em que ele estivesse ainda deixando seus materiais de trabalho pela sala. Podia ver: ele na sala, sentado, e ela, de pé, falando, na porta da sala que dá acesso ao corredor de acesso à cozinha. Quinze minutos. Quinze longuíssimos minutos. Passada a primeira, e previsível queixa-padrão, a mãe agora iria girar a metralhadora de lamúrias para os preços das coisas. Do ônibus velho, que quase não aguenta subir a ladeira.

O motorista imprudente. Dos passageiros, também; que falam, falam, e só falam. O bairro ruim, que é longe do trabalho; é violento, e parece o fim do mundo. Do lixo, que fica no campo de barro do bairro. Os homens daqui – tudo porco – que Jogam futebol no campo cheio de lixo. Deus é mais...

A praça com um jardim sem uma folha. As crianças – desbocadas – que não respeitam ninguém. E as musicas que ouvem? "Só Jesus viu? Só Jesus..." Depois de tudo isso, a mãe, como se não bastasse, faria agora o trajeto de volta, até voltar ao trabalho.

E, lógico, que a última parada dos lamentos chama-se Jorge Levi Boa Morte do Nascimento. Por mais impressionante que pudesse parecer, a lista de queixas do caçula seria ainda mais extensa do que a anterior. Onze horas da noite. Depois de duzentas e tantas horas falando, a mãe silencia. Mas não é um silencio qualquer. É o silêncio que pede respostas.

Vitor bem sabia que aquele silêncio o colocava em obrigação de falar com seu irmão, de aconselhá-lo. De tentar, inutilmente, fingir que ajudava a mãe na custosa campanha que se tornou educar Levi depois da morte do pai. Teria de fingir para o irmão mais novo que ele agora figurava entre os membros de alta patente da família, e que devia ser respeitado. Sabia que seria ignorado pelo garoto. A mãe o apoiaria. Mas não o faria por vontade de pôr ordem na casa. Dona Lida faria o que faria somente por temer a desistência do mais velho do cargo de responsável pela casa. Repreenderia o menor, aos berros.

Berros que logo cessariam, por causa dos vizinhos, conspiradores que não podiam saber da crise. Caçula ignoraria ambos, como já vinha fazendo há tempos. A mãe perde o controle, e bate. E aí não dá outra: sob o pretexto da surra, choraria o menino. Com o benefício da dor física, ele teria a justificativa para espernear. E aproveita bem a oportunidade. Se jogaria no chão, um show.

Todos em casa saberiam que na verdade a dor que corroía o coração do menino era outra. Pirraça... O choro sem consolo seria longo. Ignorando as ordens para que parasse com a descompostura, o mais novo continuaria chorando. Continuaria, por intermináveis três... Cinco minutos. Faria isso, até que, sem que ninguém percebesse, deitaria no sofá, começaria a chupar dedo, e dormiria; exausto.

A mãe agora corre pro banheiro. Liga o chuveiro e põe um balde para parar água. Mentira. Na verdade, ela usa o barulho da queda d'água para suprimir os gritos. É preciso ser inteligente até para chorar em paz na periferia. Choraria a mãe. Depois. Depois e somente depois, na cama e em silêncio, remoendo dores de outro dia amargo, chegaria, a vez dele. Agora, com luzes apagadas, sem dor física, nem camuflagem sonora, choraria, no modo mudo, Vitor coraria. Desgraça...

De repente, num passe de mágica; no estalido instantâneo, despertou de sonho, e se impressionou quando se viu de olhos abertos, no portão de casa. Olhou para o lado. Vizinhos festejando, nada de mais. Estão sempre bem. De vez em quando, as festas acabam em quebra-quebra, mas se amam. Abriu o portão... Ainda no portão de casa olhou pra atrás, por cima do ombro. Observou mais uma vez o evento. Dessa vez, sem ressentimento, sem ódio, sem sentir-se incomodado com a alegria alheia. Apenas observou. Sorriu...

E enfim, agora sim, de volta a si e munido de toda consciência e resistência física que conseguiu reunir; baixou os ombros; suspirou; e se preparou para seu (triste) fim de dia comum. Entrou. Estava na varanda.

Faltava ainda subir a escada para alcançar a porta. Quando lá pousasse, deveria estar pronto para entrar e receber o presente previsível de sua mãe. Tudo, exatamente tudo imaginado pelo rapaz iria acontecer. Lá vinha a metralhadora de verdades. Subia, vencia, a contragosto cada um dos seis degraus que o levaria à porta. Subia. Vencia-os lenta, mas muito lentamente. Ao passo que subia, sentia que algo em si desabava. Perdia as esperanças a medida que subia a ideia de deitar para dormir. Acabou a escada. Chegou, enfim, à porta de casa.


...

Dez e dez da noite. Mais um dia de trabalho terminou, e começa uma noite pior ainda. E a anterior, ele podia jurar que tinha sido a pior de todas. Realmente: a capacidade de transformação é algo com a qual não se deve brincar. Nem das coisas, nem das pessoas. Nada é – ou está – ruim o suficiente a ponto de não poder piorar.

Sim, o subsolo do fundo do poço existe, infelizmente, e é lá que Jorge Vitor e encontrou. Impressionante como uma simples porta pode servir não só como acesso; mas também como uma divisão de mundos. Mai do que incomodado, Jorge Vitor se sentiu traído, quando abriu a porta de casa e não viu a sua queixosa mãe rumar em sua direção. Olhou o interior da casa, e o que era aquilo?

É realmente impressionante o tamanho da capacidade de uma criança de arrumar seu mundo desarrumando o mundo dos adultos. É inenarrável. Os brinquedos encontravam-se espalhados por toda parte. E o garoto ironicamente não brincava com nenhum deles. Forro do sofá? No chão lameado com água e sabão, que ali mesmo se fazia em uma trilha de pegadas, que a cada ida e vinda do pequeno, se atualizava com marca de pé. O som e a TV estavam ligados. Quase no último volume. Um absurdo. O cansaço virou fervor; a calma, adrenalina; a letargia, um estado de alerta para qualquer sentinela em serviço.

Perguntava-se durante todo tempo como ele não ouviu aquilo do lado de fora da casa. Onde estaria; o que estaria fazendo a mãe a uma hora daquelas, na rua ainda?

Não conseguia acreditar no quão fabuloso foi o poder de concentração que lhe pôs tranqüilo em seu entorpecimento anterior a ponto de, a um passo da porta, não ouvir a barulheira dentro da casa. Pensando bem, queria era voltar no instante anterior. Desejava somente isso, como quem deseja que não se encerre um sonho bom. E o sonho era esse, bem simples: estar em qualquer lugar, exceto em casa. Interessante era regressar àquele paraíso psicológico, era o que o interessava.

O primeiro olhar desanimava. Jorge Vitor desanimou-se com a imagem da sala absolutamente fora de ordem. Não sentia o menor interesse em entrar e sentar, não era obrigação dele. Não queria lidar com aquilo. Não podia, e sabia que não podia. Tratou logo de procurar o socorro, a mãe. Em vão. Nem sinal. Nem sinal de alma viva na casa. O pequeno bagunceiro irmão-caçula estava só e só tocando o terror.

Avançou dois passos, e olhou, por dentro, para a mesma parede fronteira da casa. Buscou o relógio, que ficava sobre a porta. Dez e vinte e dois. Depois de se assustar com a, ainda não explicada, ausência da mãe, veio o susto, quando retornou a atividade de observador e assentou o olhar para a cena que testemunhava.

Observou a sala. Ou no que o cômodo havia se transformado, e respirou. O raciocínio lógico, depois de alguns instantes, começou a se reinstalar e a operar na cabeça do rapaz. Recuou, saiu de casa no mesmo pé que entrou. Deduziu que, para aquilo estar acontecendo, a mãe com certeza não estava em casa. O vapor quente que veio do interior da casa denunciava que aquele corpo estava ali, operando naquele ritmo havia horas. A tarde toda naquela batida. A mãe logicamente ainda não tinha chegado do trabalho.

E que golpe de ar foi aquele? Vapor quente desgraçado! Caçula derrubando tudo. E a mãe que não chegava. Calma, tinha que manter a calma, se concentrar. Estava difícil. Maldito vapor quente. A sala foi transformada em um pedaço do inferno. De tão quente que estava o local, Vitor não conseguia pensar em outra coisa.

O personagem núcleo do caos era aquele pequeno corpo que promovia a mega-desarrumação na casa. Que gritava, comemorando, em meio à bagunça que se tornou a sala. E que, para dar maior terror a cena, ria, ria. Deus é mais.

Vitor avaliou o causo e a causa. O inferno estava ali, criado pelo menor. Ele, como irmão mais velho, quase um homem, precisava se decidir. Se decidir em momentos difíceis, é o que um homem de verdade faz. Então, como um homem decidiu que iria tirar o corpo fora daquela responsabilidade. Um homem deve assumir as suas obrigações. A possibilidade de se eximir daquela tarefa exposta na sala era um privilégio do qual não quis se desgarrar. Como homem que era, assumiu que seria covarde, para o bem de todos.

A esquiva era, para Jorge Vitor, além da atitude mais prudente a ser tomada no momento, um movimento físico-mental involuntário. Sua ante-primeira opção era evadir-se de qualquer extra. Era uma questão de instinto. Convenhamos: quatorze horas de pé trabalhando, quem iria pegar um serviço não-remunerado daquele gabarito, podendo sair de baixo e deixar para a autoridade competente do lar?

Não mais iria ver o que viu quando entrou. Apagou da mente a desastrosa de arte que viu; fechou a porta, trancou-a; virou-se para a rua, e começou a assistir a festa dos vizinhos, decidido a esperar pela chegada da mãe. Devia se concentrar somente no socorro, agir com paciência, e esperar.

A demora se alongava. Vitor sofria. Por mais que os ouvidos pedissem, o portão não fazia barulho. Por mais que os ouvidos não pedissem, dentro de casa fazia som. Que estranho, e triste. O próprio Vitor já se compreendia como atrasado em seu regresso ao lar; como podia a mãe demorar mais do que ele para chegar depois do trabalho? Algo estava estranho. Será que não viria? Não. Equilibrou-se novamente. Ela vem. A mãe iria chegar. Ele tinha que apostar, e apostou todas as fichas nesse pensamento. Ela iria chegar, bater no caçula, todos chorariam tristes. Mas, eles iriam dormir em breve. O anterior pensamento desagradável sagrava-se em sonho de consumo, objeto de maior desejo do jovem.

Retomou a calma. Selou em sua consciência o contrato mental com a abstenção da causa, não tinha mais como voltar. O aprendiz de feiticeiro seria julgado pela bruxa má, não por um mediador impotente. Agiu em procura da cura, levantou-se do batente da porta, avançou um passo, e encostou o peito no muro que separava a varanda da rua. Queria ver o mais longe possível do beco. Começou busca visual. Apertou os olhos.

Encostou-se mais no muro, estirou-se, esgueirou-se, quase que projetando metade do corpo para fora do vão pré-casa. Esgueirava-se. Precisava ver longe, mais longe possível. Estirava-se, todinho. Agora, onde estava anteriormente o peito está barriga, resvalando no muro. No chão, os pés em meia ponta, a ponto de pôr invejoso qualquer bailarino, impulsionavam o corpo do jovem aos céus. Este era Jorge Vitor naquele momento, todo vontade de ver a mãe. Estirava-se na varanda da casa com dedicação exclusiva à execução do exercício mais importante do momento: olhar, para direita e esquerda. Dessa vez já não tinha nenhum interesse na festa vizinha. Seus olhos buscavam somente o corpo magro, com um vestido longo, uma bolsa na mão, e um pano na cabeça. Por isso, olhava, para lá, e para cá, reiteradas vezes. Faria isso quantas vezes fosse preciso, durante o tempo necessário.

Permaneceu ali, repetindo por intermináveis quinze minutos o mesmo movimento. Virando a cabeça. Parava. E, depois repetia o movimento, virava... Lentamente. De cá... Para lá... De lá... Para cá... Buscando a mãe... Em vão...

Até que entendeu. A mãe... A tão esperada mãe... Não chegaria... A ficha foi caindo... Caindo... Caindo. Até que o moço chegou ao entendimento de que a boa sorte o deixara esperando. Alguém precisava fazer alguma coisa. Voltou-se para a porta; agora resignado, disposto a cumprir o seu real destino. Inspirou. Respirou. Pôs, pela segunda vez, a chave na fechadura... Destrancou a porta; olhou para dentro, e entrou silencioso, no lar barulhento. Estava triste de ter de ver aquele quadro, novamente, mas, ainda assim, iniciou-se a tarefa de observar.

Por prospecção, visualizou a surra que Levi tomaria caso a mãe entrasse, arriasse as malas, e se percebesse inserida naquele cenário. Seria um desastre. Ouviu, também por prospecção, o que a mãe falaria com as paredes. Mas como é que uma pessoa vê as coisas dentro de casa errada e não faz nada; e fica parado, com cara de pamonha? Que saco.

Pausa mental. Mundo no modo mudo. Não importava o que acontecesse, o encontrágico devia ser evitado. Alguma coisa precisava ser feita. Viajava nos pensamentos, quando foi surpreendido pelo pequeno corpo que corria desgovernadamente pela casa; vacilando no chão ensaboado; ora subindo, ora descendo do sofá, indo da sala à cozinha, gritando, voltando, se jogando no sofá, e rindo. Rindo escandalosamente.

Quando entrou e estacionou na porta da cozinha viu que o quadro de horror ia além. Perdeu a cabeça com a torneira aberta; se desesperou ao ver a vassoura de ponta cabeça, sujando a parede com as cerdas. Dali mesmo olhou, mais uma vez a parede. Rapaz, dez e trinta.

Foi quando o resvalo o vez voltar à realidade. Finalmente, depois de uma rápida análise, entendeu a brincadeira: a criatura saía do sofá, passava correndo pela sala, fazia a curva a direita, passava pelo corredor, entrava pela cozinha, acelerava. Avançava até o final da cozinha e, a dois passos do fim do vão final da casa, saltava, chutava a porta dos fundos, que provavelmente julgava ser o inimigo, porque voltava acelerado, e olhando por cima do ombro, qual seria a reação do adversário imaginário. Mas ainda tinha um detalhe: no mesmo instante que chutava a porta, ainda no ar fazia, ele mesmo fazia um barulho com a boca. Era a explosão do golpe. E o corpinho matava as saudades do chão aterrissando no pé esquerdo. Dava meia volta; e voltava.

E lá ia ele, novamente... Sofá... Sala... Cozinha... "Pá"... Cozinha, sala... Sofá... Sala... Cozinha... Porta dos fundos... "Bá". Voltava fugindo do inimigo invisível. Para o único espectador o pior era assistir ao menor continuar a brincar alucinantemente, como se ali não tivesse chegado ninguém. Ninguém que significasse interferência ao seu mundo particular.

Vitor decidiu então que resolveria o problema. Parou. Ignorou os sons. Sentou-se no braço do sofá. Fechou os olhos e chamou o irmão, e, como já era previsto pelo próprio, foi ignorado. Tornou chamar. Nada. Apelou. Mão no ombro. A resposta à interdição não tardou a vir em forma de gritaria. Vitor perdeu a cabeça.

— FALE BAXO! Você quer apanhar, quer?

A pergunta já foi feita com o mais velho segurando o mais novo pelos braços, e gritando histérico. De um lado, a voz que chora apenas para ser atendida por via de apelo à chantagem emocional. Do outro, a da razão que apelava para se fazer reconhecer – a pulso – como merecedora de uma nova patente de respeito no ambiente. Ponto. Silêncio. Um silêncio perturbador instaurou-se entre ambos. Levi estava contrariado, mas se deu por vencido. Esperava ordens. O irmão, Vitor, por outro lado estava desesperado. Tinha conseguido o silêncio do menor, mas não sabia conduzir a situação. Os olhos de Jorge Vitor estavam fincados em Levi.

A mente do menor moveu-se, brusca e tragicamente, como placas tectônicas em terremoto, traçando o mapa horrível do que seria sua irmandade futura. Ele fez o que pôde para salvar o irmão, mas não deu. Jorge Vitor era mesmo um adulto, um maldito adulto. Leis; interdições; imposições; e condições; era o que deveria esperar do traidor de agora em diante.

— Senta aí, Levi, por favor.

E o mais novo sentou-se. Vitor emocionou-se, quase não tinha reação. Quase não conseguia comandar, de tanto que estava incrédulo, diante da situação de obediência do mais novo. Graças a Deus não precisou bater. Mas, sabia que tinha que continuar sendo duro.

— Olha: quem aprontou foi você, então é você que vai arrumar tudo de novo! O mais novo nada dizia. Apenas obedecia aos comandos. Tudo corria num silêncio e amargo medo. Até que, Vitor se excedeu, e cometeu um pequeno erro. — Vá, que na volta a gente toma café, e na volta eu te conto uma historinha. Até você dormi...

— Oi? Essa foi à única hora que Levi respondeu sonoramente ao irmão. Ele olhou assustado e ficou parado, esperando ouvir novamente o que lhe havia sido recomendado. Sim, ele iria ouvir uma história.


...

De repente, Vitor apurou o que havia dito e, muito mais do que se surpreendeu, se arrependeu. Cometeu o grave erro de prometer algo a Levi. Sim, percebeu. Mas, já era tarde. E algo que possivelmente não seria capaz de cumprir. Desatenção. Só por que teve obediência, se empolgou, quis premiar o subordinado com algo. Erro grave. Era tarde.

Não havia mais nada o que fazer. Era encarar o destino como havia feito até ali. Era ter força para encarar a sua...

— Batalha épica?

— Sim.

— Não sei o que é que é isso não!

— Como assim, não sabe?

— Sei mais ou menos. Conta aí a historia.

— Tá bom. Silêncio a partir de agora, tá bom?

Bom... Dizia uma lenda antiga que, depois de mil anos, um Dragão surgiu para amedrontar um certo povoado... O povo da cidade ouvia rugidos assustadores vindo do céu.

— Do céu?

— Sim, do céu! E foi assim. Assim que começou o grande conto contado por Vitor para Levi. Com atirada da dúvida de quem duvida. Sobre o que seria uma batalha épica.

A ideia foi arranjada das coisas do pai. Num quadro que um dia foi fundo de relógio. Nele, o bravo guerreiro vencia o Dragão. Dali partiu a ideia. Uma batalha extraordinária.

A narrativa continuava, discorrendo sobre o desconhecimento sobre o autor do barulho. Ninguém imaginava o que era aquilo! Só ouviam os barulhos que pareciam raios; trovões. Eram trovões, na verdade! Trovões-travados.

— Como Raio?

— Sem interromper! E o mais velho já tinha o domínio da narrativa. Era tudo como ele quisesse. E ele optou pelos raios. Sim, eram raios... Bastava a Lua estar no céu para o pessoal ouvir os estrondos infernais. Em noites de Lua cheia era bem pior.

Depois de muito, muito, tempo ele se revelou; apareceu pro rei. Rei? Silêncio. Desculpe. Sim, rei. Não se sabe o que conversaram, mas depois desse dia o Rei se desesperou, e saiu a procurar por alguém que enfrentasse o Dragão no prazo de um ano. O tempo passou e como o rei não tinha como combater o Dragão, decidiu avisar que quem derrotasse o monstro poderia se casar com a filha dele e da Rainha Dulce, a linda Princesa Néia.

O candidato teria seis meses para se preparar. Muitos homens se encorajaram e pensaram em ir. Iam ao castelo e eram bem recebidos por lá. Mas quando a noite chegava junto com a barulheira, todos desistiam. Ficavam com medo e voltavam para as suas cidades, envergonhados...

O tempo passava e o rei se entristecia. A cada dia, o abatimento era maior. Até que, faltando dois dias para o prazo vencer, um homem comum, foi ao rei e pediu a ele para ir ao ponto mais alto do castelo do Vale. Ele queria enfrentar o Dragão. O rei inicialmente duvidou do homem, duvidou até que ele era guerreiro, mas... Como não tinha um soldado interessado em se habilitar para a tarefa, ele permitiu ao homem, o direito de morrer em combate.

Então chegou o grande dia, e lá estava ele, o guerreiro, Soldado Jorge da capa vermelha! Ele foi ao ponto mais alto do castelo e então subiu a escada, e alcançou a lua. Depois de subir a escada, ele assoviou bem alto, e o cavalo dele, que ninguém ainda não tinha nem visto, veio, e, com três pulos, também estava na terra do chão de brilho.

Depois, Jorge montou em seu cavalo, cavalgou um pouco pelo chão meio amarelado. Já não ouvia mais a voz de ninguém que ficou na terra. Era só o chão amarelo, o azul escuro do céu, e o brilho da estrelas, que pareciam vaga-lumes de níquel. Quando passou o nervoso do lugar novo, logo a frente, Jorge e seu fiel escudeiro puderam ouvir o barulho de um abanar de rabo. Dragão estava perto.

Enfim, os dois ficaram frente a frente com o monstro, se encarando: Jorge e o cavalo de um lado; a Fera monstruosa de outro. Ia começar. Se estudaram. Na ponta de cima da Lua em forma de "C" estava o Dragão, enrolado. A cauda dele estava em direção ao céu, abanando, era o que fazia o barulho. A cabeça, inclinada para baixo, olhava o Cavaleiro e rosnava.

O cavaleiro encarou o Dragão sem medo. Como estava na parte de baixo, olhava para cima, podia ver a cara e o corpo da fera como ninguém nunca tinha visto: era realmente um monstro ameaçador e amedrontador, qualquer homem se assustaria. O cavaleiro não.

O monstro era grande: tinha duas asas logo depois das patas dianteiras. A ponta do enorme rabo em forma de seta, tinha-se um poderoso osso perfurante. E no corpo, com a barriga amarelo aveludada, e as costas, verde escamosa e espinhenta, com quatro ossos em seu centro, concluía a visão de fazer tremular qualquer nobre guerreiro. Mesmo com tudo isso, Jorge não temeu...

O Bicho tinha, na cabeça, chifres enormes. Na cara, olhos ameaçadores, e um grande bigode, para finalizar. Como de gato selvagem. Do nariz saía uma fumaça que misturava com as nuvens e fazia elas evaporarem, de tão quente que era o hálito do monstro. Ele aproveitava para camuflar ali mesmo. A boca, com dois fios de bigode em cima, era principal arma da Fera. Era de onde ele ameaça as vítimas com seu grito ensurdecedor. Se não funcionasse, ele cuspia fogo em quem se atrevesse a não fugir de primeira.

Ainda assim, o cavaleiro permanecia montado em seu cavalo, em silêncio. Nada temia. Abaixou a viseira do elmo, e apontou a lança para a fera. A hora do combate tinha chegado. Soltou um grito, convidando a fera para o embate, sem recuar um passo.

E a luta começou com um indo em direção ao outro: O Dragão gritou e veio no movimento de um bote de uma cobra, Jorge agitou o cavalo e começou a galopar cada vez mais rápido em direção a cabeça da fera, com o braço da lança recuado, pronto para estacar.

O Dragão não era bobo. Veio de frente para enganar, simulou um bote com a cabeça, mas usou a calda para atacar o Cavaleiro por trás. Tentava furar as costas de Jorge. Não adiantou: O Cavaleiro estava atento e se defendeu com o seu escudo de bronze. E, no mesmo ato, atacou o rabo da fera com a sua lança, dando um furo na marca de seta que ficava no fim do fim da cauda do Bicho.

Com o primeiro grito do Bicho, Jorge aproveitou e cravou a lança num pouco mais acima da primeira ferida, pregando o rabo no chão da Lua! A fera começou a soltar fumaça pela venta. Ia cuspir fogo...

Duas bolas de fogo foram lançadas logo de cara pelo Dragão, tentando liquidar o guerreiro Jorge. Não foi fácil desviar, e pra piorar veio uma terceira bolona assim! Essa terceira ele teve que defender com o escudo! Foi diferente da cauda. Dava pra sentir o braço queimar, e dava pra ver o escudo ficar avermelhado. Só de defender aquele acarajé gigante Jorge percebeu que não ia poder defender outro. Foi quando veio a quarta, uma gigantesca bola de fogo.

Seu Jorge desviou por um triz. Sentiu que estava pressionado. E avançou determinado em acabar com o combate. Pulou em direção a boca da Besta, que já se preparava para atirar a quinta e maior de todas as bolas. A decisão se aproximava.

O final foi emocionante: Jorge, no ar, indo em direção a boca do Bicho, e o Bicho olhando para baixo com a boca aberta. Tudo na lua, estava avermelhando. O fogo já estava perto de sair da boca do monstro. Os dois pensavam só em atacar, mas o cavaleiro estava em desvantagem. Sua espada era pequena, e não alcançaria a Besta a tempo. A lança não estava mais com ele... E o Dragão ia cuspir... O Nariz começou a esfumaçar...

Mas, antes do tiro, Jorge, sabendo que ia ser seu fim se tomasse aquele ataque em cheio, arremessou seu enorme e pesado escudo de bronze na boca do Dragão, surpreendendo ele. O bicho, surpreendido e atordoando, ficou muito prejudicado, porque a bola de fogo, que já ia sair, ficou lá dentro da boca, o que foi muito ruim para ele. Foi quando veio o golpe mortal de espada, seguido de mai dois, que praticamente reduziu a zero a capacidade de movimentação da fera.

Surpreendido pela inteligência do guerreiro que colocou contra si a sua própria arma, o Dragão apenas tossia, ferido, com a cabeça tombada. O escudo impedia de cuspir mais fogo. Os cortes faziam ele se enfraquecer cada vez mais. A calda estava presa; não podia mais se mover. Estava entregue.

Faltava só o último golpe, o golpe de misericórdia. Mas, antes disso, a fera fez um esforço para ver, abriu os olhos, quis saber de algo. Ele queria sabe o nome do Cavaleiro tão destemido, que não só o enfrentara, como triunfara sobre si, ali, em seu terreno, na lua. Já desmontado e bem próximo, o Cavaleiro se assustou quando viu a Fera falar, mas, respondeu.

Jorge. Meu nome é Jorge. O Dragão piscava os olhos lentamente, falava com esforço. Estava nas ultimas, a morte se aproximava. Jo... Jorge. O seu nome... Será... eter... eternizado... Jo-Jorge... Jorge... Terás nome... de... santo... És... o... mais... forte... de todos... os homens...

Jorge, o cavaleiro o mais forte de todos os homens, não interrompeu o monstro. A própria quimera que, depois de reconhecer a força superior de seu oponente, disse a sua última frase: Agora... Faça... Pegue... A sua espada... O guerreiro retirou a espada... Ergueu-a... Ergueu a espada aos céus... Fez referência... E deu o golpe que gerou o último grito, ouvido por toda cidade.

Depois de morto, o corpo do Dragão foi se transformando em luz. Uma luz cada vez mais intensa... Mais clara... Mais clara; mais clara... Até explodir! Explodiu, fazendo a noite virar dia por alguns segundos... Choviam pequenos vaga-lumes... O ar foi ficando mais tranqüilo...

O céu e as nuvens, que eram alaranjados, voltaram as suas cores normais. Lentamente, nascia uma noite tranquila, como há tempos não se via. A escada sumiu, misteriosamente. Misteriosamente, o cavaleiro já estava no terraço do castelo, junto com seu cavalo, agora bem mansinho. O rei foi até a parte mais alta do castelo para se encontrar com ele. Não precisava dizer nada. O fedor e o barulho que o Dragão fazia, sumiram. O cavaleiro havia triunfado. Todos sabiam. Era verdade... Ele era o vencedor...

Depois o rei revelou, o fedor foi o que primeiro chamou a atenção. Depois perceberam que, em noite de Lua cheia o fedor era pior. Depois foi a vez dos gritos começarem. Até que numa noite o monstro apareceu para o rei, e disse que uma coisa tinha chamado a atenção do dele. Um cheiro bom. Que vinha do castelo. E era o cheiro do cabelo da filha do rei. O cabelo da filha do rei que era cheiroso a ponto de chegar na Lua.

O Dragão então disse que o rei devia lhe dar aquilo que não lhe deixava mais dormir de tão cheiroso. Ele iria comer aquilo, e curar o ardor em sua garganta. Ou o rei dava a filha por bem, ou o Dragão iria descer em um ano. E a cidade podia ser destruída. Foi quando o rei começou a procurar por um guerreiro, para matar o Dragão. Não achou ninguém. Ia desistir. Foi quando Jorge surgiu e fez o que fez.

E assim, o Cavaleiro e princesa se conheceram, se apaixonaram, se casaram, foram felizes para sempre.

Não! Pra sempre não! Depois de um tempo, Jorge, o grande guerreiro, morreu.

— Morreu?

— Sim. Sim, morreu. Levi... Levi; entenda: as pessoas não são eternas. As pessoas morrem. Um dia as pessoas morrem. A gente precisa entender que a vida é assim. As coisas são assim, por mais que seja ruim. Pessoas morrem, e outras nascem. E é assim que a coisa é. O rio tem que seguir. Mas isso não é tudo. Se preocupe não. A vida não acabou. Teve gente pra continuar a linhagem. O cavaleiro teve filhos. E esses filhos tiveram filhos... Filhos... Filhos... E esses homens, filhos de Jorge, seguem honrando o nome desse guerreiro.

O nome dele, como o Dragão disse, nunca foi esquecido. E os filhos do cavaleiro ficaram espalhados mundo afora. Eles são capazes de espantar qualquer mal. Mesmo que volte a aparecer um Dragão na Lua. Vai urgir um guerreiro Jorge que matar esse Dragão. O Jorge vai salvar o mundo. Os monstros vão ter que pensar bem antes de quererem aparecer!

Ao fim, antes de anunciar o final da história, Vitor percebeu que seu irmão já tinha dormido. Finalmente. Finalmente, o menino menor, o caçula, a fera indomável, estava agora traquino, tranqüilo.

Enfim, fim do problema. Agora sim, fim. Fim do fim do dia... Estava acabada a missão do menino maior. Acabara a segunda batalha épica. Do garoto, de garoto promovido a homem. Homem... Batizado nas águas frias do chuveiro sem ducha em um dia qualquer.

Enfim, o homem da casa entendeu a sua importância. Sorriu... Tinha conseguido. Sorriu, então, aliviado. Sorriu e compreendeu que quando se perde algo, se ganha algo. Entendeu que, melhor do que ser o que se é de imediato, no momento da perda, é aquilo em que o ser se pode transformar, no instante porvir.

Entendeu o que é ser potente, o que é poder fazer alguma, o que é ser alguém importante para alguém importante. Entendeu que há força no fraco. Uma força futura, estranha, invisível, capaz de transformar qualquer coisa ou pessoa em algo melhor. A força do poder ser.

Mentalmente aferrado desse pensamento incompreensível, Jorge Vitor é agora o dono do mundo. Não temeu nada mais. As prospecções, anteriormente vilãs, eram agora positivas. Sim, a nuvem estava passando...

Relaxou... Sabiamente sorriu...

Agora, era hora de mover-se. Carregou o irmão, e pôr na cama. Tirou-o do sofá e colocou-o na cama. Assim que retornou à sala, aprovado com louvor por si mesmo, deu de cara com a mãe.

Comunicava-se com ela em silêncio, a movimentos rápidos e sincronizados: tudo bem, tudo bem. Dona Julinha obedecia. Como se poderia imaginar aquilo? Jorge Vitor, o até então inexpressivo, agora manda mãe calar. E ela obedece. Novos tempos...

O guri ocupava agora o lugar do pai. Lentamente o braço esquerdo estirou-se. Maravilhado com o que promoveu, Jorge Vitor sorriu e mostrou à mãe a sala arrumada. Ainda bem que ela chegou tarde aquele dia. Conseguiu...

Faltava o final. Novo sinal manual. Apontou o quarto. Repousava lá, na santa paz divina, o tesouro da casa. O corpinho deitado na cama em meio à meia luz. Era o menino Jorge Levi que dormia o sono dos anjos. Agradeciam, rezavam pelo pai do céu. A mãe assentiu orgulhosa.

Jorge Vitor amava ver o irmão dormir. Desejava que os sonhos do pequeno se realizassem e nada mais. Que ele se tornasse o tal guerreiro destemido, que combatia seu inimigo invisível mais cedo. Que ele conquistasse a si, a sua mente, a família, o a vizinhança.

Nos olhos do Jorge que sonha acordado e projeta futuro de luzes, o Jorge que dorme cresceria bastante, cresceria tanto quanto o da história anteriormente narrada. Com certeza um bando o reconheceria com'Ogum grande caçador, como um grande protetor dos artesãos. Aquela grande criança, aquele grande pequeno seria, com certeza, grande enorme nome no Brasil.

Seria chefe dos escoteiros, líder de cavalaria. Adorado pelo exército, seria eu nome. Aquele pequeno corpo, aquele pequeno Jorge, o leve Levi levaria e elevaria sua imagem e nome a símbolo de uma linda e bela cidade maravilhosa, assim como é São Sebastião.

Ganharia o mundo com seus pensamentos e artes. Quem faz de mural a lua, o céu seu é seu limite; o mundo é coisa pouca. Atingiria a Etiópia com seus super poderes; colonizaria a terra dos colonizadores. A grande rainha da Linda-terra e sua capital o teriam também como protetor. Serviria a Sérvia o Montenegro ao nosso garoto. As irmãs, Geórgia e Lituana, lembrariam seu nome em oração e casas de reza. Por Barcelona, por Gênova, pelo Régio da Calábria, por Moscou, seria ele lembrado e aclamado, jamais esquecido.

A capital da terra do cedro verde em bandeira pediria sua proteção em oração, e seria, sem dúvida, ouvida. Verde era esperança na renovação, posto envolto em branco, a paz necessária para o desenvolvimento de qualquer nação. E o branco, a paz, em centro das duas tarjas vermelhas, era o sangue de quem protegeria o futuro da nação a todo custo.

Pois se era aquela casa uma nação, filho e mãe iriam sangrar para proteger aquele pequeno. Iriam, ambos, resistir duros feito carvalho. Beirute ergueria uma Catedral Ortodoxa em seu nome, um templo que venceu um terremoto, um tempo da Ressurreição. Aquele garoto ganharia o mundo, inspiraria o artista morto em vida e o faria reviver, pintor renascido dos Santos, o homem que em sete dias pintaria quadro da própria vida e o set da própria morte.

Os olhos da certeza do sucesso miraram o futuro fruto. Jorge Vitor não sabe, mas ele também se destacaria no mundo. Seria esperança das famílias em conflito. Seria exemplo para pais, mães, e filhos. Seria ele, mesmo que sem saber, o menino da capa verde, destaque na vizinhança. Uma mãe ainda em gestação também se inspiraria nele.

A mãe, orgulhosa, nada mais dizia. Apenas olhava o mais velho olhar o mais novo dormir. São Jorge, Levi e Vitor. A mãe, calada, só chora. Silêncio de paz que domina o lar, e como ela não conta o conto, conto: são Jorge. Ambos os Jorges, vitorioso e leviano, tal como o pai.

Foi aí então que filho e mãe entreolharam-se. Os quatro olhos, marejados, encontraram-se, e permitiram-se observar-se sem nenhuma defesa. Era chegada a hora de chorar. Então choraram; no vão não em vão. Quatro olhos que há dias tinham tanto tentado negar do choro, hoje aceitam, com resignação feliz os seus destinos. Não adiantou fugir. Não adiantou...

Lágrima, fina e saudável; final inevitável. Se não pela dor, pelo orgulho, pela felicidade. Caminhos diferentes que levam ao mesmo desfecho... Da emoção à flor da pele que nunca seca. Não havia mais o que fazer. Então, chorosos e orgulhosos, mãe e filho, agora felizes, permitem-se.

O mais novo homem da casa do mundo sentiu-se o maior de todos, aceitou-se com humildade e orgulho. Afinal, garantir o sono tranqüilo da mãe, e do irmão, com uma só história, não tinha o que pagasse.

Sim. Mas, não! Não teve tempo de comemorar. Já era hora de dormir. Era hora do merecido sono dos justos. Amanhã seria outro dia duro. Amanhã seria mais um dia de trabalho. Amanhã; dia de batalha.

Amanhã; dia de guerra.

Amanhã; dia de luta.

Dia de Jorge.

Pra sempre.

Vitorioso.

Salve...

Jorge.

O Leviano


Humm, Vitor! Até que enfim. Até que enfim que você se levantou. O outro está na rua. Mandei brincar. Por que eu não quero que ele ouça nada da nossa conversa não. Então Vitor, vou te falar. É que eu soube que aconteceu por esses dias da semana. Tá acordado? Eu sei. Eu sei que você chegou tarde, e tudo. Tá cansado... Eu sei... Mas... Mas, é importante!

Senta aí; que eu quero lhe falar umas coisas; senta aí no sofá, do lado onde seu irmão estava. Temos que falar de algumas coisas, e tem muito que ver com seu irmão, Jorge Levi. Como se não bastasse tudo que a gente já não passa aqui. Falta de água e tudo mais. Morando aqui nesse bairro meu Deus do céu. Ah, pois. Como se não bastasse isso, o seu irmão... Seu irmão... Vitor; vamos conversar... Mas... Espera! Deixa eu ir olhar aqui... Onde... Onde que está.

Então... Vitor, já parou, já, de rir? Para de rir menino. O assunto é sério. Para de rir que eu quero falar com você, menino... Mas, primeiro, deixa eu chegar aqui; da varanda... Da varanda é melhor. Pra ter certeza. Está ali, na frente... Pronto. Podemos falar agora. Pare de rir. Para de rir, que eu quero lhe falar duas coisas sérias. Primeiro me desculpe, que eu não queria te acordar; que eu vi que você chegou tarde, muito tarde; tava trabalhando... Mas eu tive que te chamar...

O que foi? Vou lhe contar então... Espera, que eu vou lhe contar... Pois, você já está sabendo que o seu irmão é o assunto na rua? Desde quando? Desde ontem. Desde ontem que não se fala mais em outra coisa! Por quê? Ah, você não sabe. Seu irmão, depois que ouviu ou viu alguma coisa, ele começou a inventar. Se meteu a herói, a sei lá o que, saiu pelo mundo e fez, você sabe o quê? Sabe? Esse menino... É doido... Sabe o que foi que ele fez? Ele estava brincado com um rato, no meio do beco. E pior, que não foi aqui não, foi no beco de lá de baixo.

A raiva é tanta... Que só de lembrar disso, só de lembrar já dá logo vontade de pegar logo e dar um monte. Sim! Foi ele! Todo mundo viu! Foi ele sim. Aí em baixo foi maior zoada por causa disso. É, ele matou um rato! Sim! Ele matou um rato aí no beco aí do outro lado, aí mais pra baixo.

Hã? Como assim, quem viu? Todo mundo! Todo mundo viu! Se foi de dia! Como é que ninguém ia ver Era de tarde. Tava aqui. Chegou da escola e foi fazer um negócio desses. Foi na luz do dia, pra todo mundo ver a loucura dele! Tava fantasiado, até. Todo mundo viu... No Beco da Rabada, Vitor... Diz que foi ali perto de onde as meninas deixa as roupas estiradas no chão. Quem me disse foi elas. Eu também não quis acreditar não, logo quando eu soube disso. Acredite ni sua mãe meu filho. Diz que o tal do rato apareceu. Aí... Ah, pois. Então... Aparece o rato. Vem seu irmão, sabe Deus de onde, e mata esse tal desse rato.

Vai, faz o que faz. Todo mundo viu a cena extraordinária dele; a maluquice. Agora tá aí o maior rebu por aí tudo! Não se fala mais em outra coisa nas redondezas...

Como eu estou? Preocupada não é? Por quê? O Beco da Rabada é o pior beco que tem. Oh Vitor... Eu estou te falando aqui uma coisa séria. E você tá rindo? Não entendi. Por que você está rindo disso?

Não, calma. Calma que ainda não acabou não. Calma que tem mais. O pior ainda você não sabe. Você sabia que esse sujeitinho; pra terminar, ainda estava com uma fantasia! Sabia? Eu sei, eu sei que você não sabe menino, é jeito de falar... Ainda fez o que fez; vestido de num sei o quê! Quem ainda quis desenhar ele foi aquele outro. Aquele. Aquele outro, de lá de baixo. Aquele, que mataram e depois inventaram que ele dormiu e acordou morto.

Tá todo mundo por aí; mundo afora, falando dele! Falando que Levi é doido, que ele vai ficar doido. Eu não sei direito o que foi que aconteceu com ele que de uns dias pra cá ele tá mais cheio de invenção do que nunca! Montado num pedaço de pau, que diz ele que é o cavalo dele... Oi? Não sei. Não! Ele vestiu. Isso não é coisa do desenho não. Ele estava vestido com isso. Sim, aí sai; ganha os pasto que ninguém sabe ninguém vê a hora; ninguém vê ninguém sabe por onde anda. Todo dia saindo e voltando.

Chega aqui TODO sujo, sempre! Parecendo um capitão de areia... Eu nunca vi. Isso é o que o pessoal me diz; por que se eu pegar ele montado em pedaço de pau e fantasiado de rei Artur ele vai ver o que é que vai acontecer com ele... Ele vai ver o que vai acontecer com essa cabeça do mundo da lua que ele tem... Pode me olhar Levi... Pode me olhar... Nada rapaz... Que nada... É doidice em cima de doidice...

Deus é mais... Oi? Como assim Vitor? Por que fantasia, como assim? Se ele diz que é cavaleiro, Vitor! Ele acha que é cavaleiro. Que tem que ter roupa de cavaleiro. A capa; tinha até uma capa. E Vitor, você tá dando risada, mas a coisa é séria. Num sabia não né Vitor? E se alguma coisa encostou nele? Pense nisso.

Ah sim, pois saiba! Pois saiba! Ó Vitor, Ó... Ontem; eu tava falando com Joana – não! Capacete! Não! Até capacete. Vitor, até capacete ele tem! Até capacete. Joana ontem me disse que esse menino tinha na cabeça, quando matou esse diabo, esse inferno desse rato... Teve gente que falou em garrafa... Garrafa de quê? Bebendo ele não tá. Cheirei a boca dele. Nada. Não achei nada. Todo dia, quando chego do trabalho agora eu cheiro a boca dele.

Dizem que o tal do capacete era o melhor! E calma que eu ainda não acabei não... E a espada, tá sabendo da espada tá? Aonde? Na cintura. E era espada, era lança. É tudo! Olhe: isso me custou para eu acreditar que fosse verdade viu? Custou. Enquanto o povo do beco tava falando eu não acreditava, mas só que quando Joana me falou que viu, aí eu acreditei.

Joana é séria. Ela ficou preocupada de Levi pegar aquela doença do rato. Leptospirose. Nem pensou que podia pegar essa doença. Agora me diga se um menino, que chega de'jun de um rato, é sabido? Agora, me diga, Vitor; me diga; se essa pessoa, Vitor, se esse menino. Diga, se esse menino pensa certo, fazendo essas loucuras.

Vai; em tempo de pegar essa doença... Do nome ruim do cão de falar... Imagine remédio para uma possenga dessas! Vitor: qual é o motivo de tanta graça? Quanto mais eu falo mais você ri... É sério isso aqui! Já te falei que eu estou te pedindo ajuda para consertar as maluquices de seu irmão, e você fica rindo. O problema é esse: te chamei por que antes, mais cedo, eu já tinha pego ele para perguntar quem tinha ensinado essas coisas a ele; se alguém disse alguma coisa a ele. Sim, perguntei... E ele? Ele não diz! Não diz quem é... Eu comecei a insistir, ele começou a tesar comigo... Levi começou a bater boca comigo. Eu já tava perdendo o controle, mas eu não quero, não vou mais bater nele por nada... Aí foi que te chamei; para acalmar as coisas.

É isso, quero te passar as coordenadas. E você tem um problema para resolver. Você tem que saber quem é essa coisa, por favor pelo amor de Deus, essa pessoa que tá colocando coisa na cabeça dele. Quem é essa pessoa. Preciso de sua ajuda. Tente descobrir, de alguma forma, quem é que ensina isso a Levi. Vá investigando, entendeu? Vendo o que ele assiste...

Você não sabe quem é, sabe? Temos que descobrir quem é... Mas já vou logo lhe avisar: não pergunte nada a ele, que ele não vai lhe dizer nada. Tem de procurar saber, sem ele saber. Fez algum amigo novo? Ou alguma coisa assim... A gente tem que prestar atenção nesse menino.

Eu por mim essas revistas que ele lê era tudo fora. Eu tô mais querendo é jogar tudo fora; picar tudo na lata do lixo, que eu tô achando que ele leu foi uma dessas aí e ficou assim. Como não sei qual é, jogava logo tudo fora de uma vez. Mas; se eu jogo fora sou ruim né? Ele fica mais longe e é aí que o inimigo age...

Olhe: preste bem atenção, por que eu tenho certeza que é alguém que tá bem perto que fala essas maluquices para ele viu? Então aproveite, que é você que fica junto dele, e vá vendo. Eu tive foi um sonho que me alertou; para eu te alertar; para você também alertar seu irmão. Fique esperto. É alguém de perto; que fala com ele...

Viu Vitor? Para de achar graça! É alguém de perto... Não tem quem tire isso da minha cabeça... Tem que ficar em cima... Por que já tem gente que já tá dizendo que o espírito de Zé baixou nele. Veja se pode isso! O povo gosta viu! De intriga? Esse povo daqui gosta muito. Eu disse que não era nada disso. Mas... Se isso continuar, aí a gente vai ter que fazer alguma coisa, porque coisa ruim quando entra na casa é difícil sair. Eu falei um monte de coisa mais cedo e você aí dando risada. Mas é sério, muito sério isso. Por isso que te acordei.

Tem que cuidar, para não acontecer nada... Temos que chegar antes do mal que vem da rua! Temos que chegar antes dos que rondam nossa casa, nossa família! Viu filho? E quando eu falar sobre isso, por favor, não dê risada mais não... É só isso... É isso... É por isso! É por isso que a gente diz... A gente diz que tem que cuidar... Ninguém quer saber de nada não, Vitor... É cada um por si... Vamos cuidar, meu filho. Vigie! Vigia o mais que você puder; que o papel de adulto é ficar em cima, vigiando.

Tem que vigiar; por que, senão, daqui a pouco já tem vizinho dizendo que meu filho é cata-lixo... Isso se não já ter. A boca dos outros é muito porca, meu filho. Jogam praga contra nós, que somos filhos de Deus. E a gente sabe que tem que orar e vigiar; por que sabemos que o mundo jaz sob o maligno. Mas sabemos também que o que é gerado de Deus, se cautela, e o maligno não toca... Tá lá em João...

Eu tenho fé que a gente não vai ficar assim pra sempre não! Estamos no Verdadeiro... Sim, estamos no verdadeiro. A gente tem que cuidar. Né possível que os dias de paz num chegue aqui, em minha casa, num fiz nada! Eu não fiz nada para merecer punição toda vida. Hum... Hum.

Me ajude por favor pelo amor de Deus! Me ajude... Olho em Levi... Por que ele é o mais fraco a casa... Se pegar alguma coisa nele eu não sei o eu faço... Olho nele, por favor... Vamos fazer o que for preciso... O que for preciso para proteger o menino... Meu inocente. Converse com ele... Eu gosto quando você conversa com ele... No outro dia ele fica quietinho, pensando...

Converse; cuide dele... Vamos cuidar... Por que senão o mundo toma conta. Não pode... Não pode não. Vamos ungir nosso pequeno. Que senão eu vou ter é que chamar a rezadeira aqui em casa. Fala com ele... Me promete que vai conversar com ele hoje. Promete?

Mesmo? Isso. Eu gosto quando você fala assim. Deixa comigo... Adoro quando você promete. Parece seu pai. Vou cuidar das coisas... Desculpe atrapalhar seu sono. Pode ir agora vá! Vá! Pode ir. Pode ir se descansar agora. Vá, vá; meu filho... Meu bem-aventurado... Vá dormir, vá... Vá se descansar...

Ah! E pare de rir quando eu tiver falando com seu irmão! Não é bom... Não é bom não... Você agora é exemplo rapaz. Pode não parecer, mas Levi se mira em você. Já vi tudo... Você acha que ele não gosta de você, fique aí pensando... Preste bem atenção que você vai ver. Preste só atenção... Espia o que eu tô lhe dizendo. Espia, mas não ria. Eu aqui colocando as coisas em ordem e você rindo? Não pode...

Cuidado. Assim você pode perder o respeito dele. Aí ele vai começar a te desrespeitar. E eu não quero isso. Exemplo. Dê exemplo...

Pense. Pense nisso. Agora dá um abraço. Beijo. Num pense que você tá homem que você não pode beijar sua mãe não. Mãe te ama. Nunca se esqueça disso. Agora pode dormir. Vá dormir que mãe cuida do resto. Bom descanso, meu querido filho.

Tão certo assim! Olha o barulho no portão. Foi a conta certa, de tempo. Ele chegou.

Roupas & Armas

Depois da tragédia, família Boa Morte mudou. A mãe teve de sair da costura e corte para ir trabalhar em casa de madame. Os filhos, quase todos, tiveram de voltar para São Felipe. Os dois mais novos foram os que ficaram e também tiveram suas vidas mudadas. O menino mais velho ficou rapaz, garoto de boa índole, e trabalhador.

O caçula está reencontrando o caminho de criança, depois da crise. Está cada vez mais solto, e é por ter ele tempo e espaço o suficiente para rumar e arrumar irritação é que essa historia existe. Esta condição tem deixado Dona Julia nervosa. Absolutamente compreensível para aqueles tempos e aqueles termos. Aquelas ações, diversões e situações na periferia nunca terminaram bem.

Para piorar, com o passar dos dias, uma suspeita de cabeça de mãe ficou cada vez mais evidente: Levi estava fazendo algo. E o pior era que ninguém na casa sabia, ainda, do que se tratava. Não se sabia o que; como; por que; para que; nem de onde se tirou tais idéias, nem o que lhe inspirou. Mas, pensa a mãe, o que parece é que após ver ou ouvir alguma história o menino mais novo inventou de inventar.

A primeira coisa estranha que perceberam foi a ideia lata. O menino, sem quê sem pra quê, resolveu reabilitar o antigo chinelo de dedo. Se a viagem fosse usar calçado velho tudo ok, a maluquice seria normal. Problema foi que o pequeno, depois de já ter testado duas de cerveja, coletou duas latas de sardinha e calçou-as. Depois de amassar, e dividi-las ao meio, obteve a grande descoberta do calçar; caminhar; cá, cá, cá. Cavaleiro em pé e marchando.

Atenção fiéis, olhos nos pés, e nota dez. Lata de cerveja: perigosas nas corridas. Lata de sardinha: sem riscos de corte, invisíveis. De quebra, o sonhado barulhinho, o barulhinho bom, barulho imaginado. Sonzinho no tom, barulhinho encontrado. Era Levi, que era leve e era livre. Viva infância. Pés no chão, cabeça nas nuvens.  Deus, abençoa guri titã.

Livre ainda da vida de adulto, menino menor partiu em busca da realização, após idealização. transformação. O pedaço de pau: uma espada. Serrado ao meio, o mini-bastão, casado com um pedaço de garrafa de refrigerante cortada acima da metade, transforma-se em espada. A intenção determinava, mesmo sendo tudo madeira e plástico, fronteira entre lâmina e cabo. A partir da boca da garrafa tinha-se a maior parte de madeira a mostra. Era o que correspondia à lâmina.

Para baixo, onde estaria o corpo da garrafa, tinha-se um pequeno espaço. Era o cabo. Coberto por uma pequena parte do corpo da garrafa que foi, propositalmente, mantido. Aquele pequeno casulo plástico em verde servia como o protetor da mão do destemido guerreiro. Que capricho. Aquele era o instrumento de maior valia de qualquer guerreiro, e aquela era uma obra a prova da estupidez humana. O pobre sofre, mas pode-se nobre.

No plano de fundo da feira de domingo, o pano imundo, jogado, encardido. Encardido, porém ainda vermelho. Mais cedo, objeto; agora abjeto. O agora podrido, mais cedo, abrigo. Ao meio dia, o saco de alinhagem, a morada de laranjas, é lixo agora e nada mais. Saco passa a ser lixo à medida que esvazia. Lixo é lixo. E quem cata é gari. As vezes...

Com esse menino é diferente. As coisas mudam. Olho bateu na peça imunda; imagem inunda, na cabeça que é um mundo. Inunda, enxurrada de idéias. De visões. De divisões. Provisões e previsões. Premonições. Saco de laranja morreu. Aquilo era uma capa.

O problema eram os adultos, como sempre burros demais para perceber. Daí a lançar-se ao movimento é um pulo. E os adultos. Um alerta ao feirante. Um garoto pegou algo.

— Não! Foi só um saco vazio... Ele me pediu...

E fim. Missão cumprida. Jorge Levi é agora um quase-cavaleiro.

Só mais tarde, testando nova peça da indumentária, percebeu sofrendo na própria pele as conseqüências da imprudência e imperícia que foi a não-lavagem daquilo. Uma; três; vinte e três picadas. Vinte e três surpresas desagradáveis. Elas, as terríveis formigas. As vermelhas, as piores. As malditas. Estavam na capa. O resultado é o corre-corre. E a volta para casa. Dor, ardor e gritaria. Cautela é preciso.

Belo dia, voltando da Escola, surpresa. Não se sabe se por sorte; por azar; por acaso, ou se por mero capricho do destino. Mas, o garoto encontrou o que julgara ser objeto de seus desejos. Tratava-se de nada mais nada menos que um velotrol. Um simples veletrol sem rodas. No latão do lixo, vazio. Que sorte! De repente, tudo mudou. O dia comum como um dia qualquer, transformou-se no dia qual quer realizar-se sonho da vida.

O tal do objeto em si não importava. De estar no lixo, também não importava. Estava no lixo e lá iria permanecer. Era até bom – não ia precisar pagar. Por estar sem rodas tampouco se ligava. A cabeça. A cabeça em forma de cavalo, sim, era o mais importante. Na verdade era um burro. Também não importava. Era tudo de mais especial que aquele objeto poderia ter, a cabeça de animal de montada. No momento nada era mais importante do que aquela cabeça de cavalo atirada fora.

Luxo e lixo vão a forma de ferradura. Estão sempre afastados, mas juntos, também. Mais uma vez a mente-mundo do menino menor de Dona Julia funcionou. Iria precisar daquilo. Destino traçado. Cabeças unidas. Estranha cabeça de cavalo entrou na entranha da cabeça do menino. Lá fez morada. Aquela cabeça, orelhas triangulares como chifres, e boca de feliz impressionou o observador. Seduzido, aproximou-se, abaixou-se, tornou-se, de ato mesmo, ceifador e criador. Faria o que fosse preciso. Iria usar a cabeça sem sombra de dúvidas. Iria decapitar o inanimado. Lá foi. Era hora de todo corpo agir em função da cabeça. E assim foi: braços e pernas, pés, mãos, e dedos. Tudo junto; agindo, operando em sentido lógico. Tudo em busca de um só objetivo: trazer o herói do mundo das idéias para o mundo dos objetos. Ainda no local, a pancadas e cortes, conseguiu. Mãos na cabeça, hora de voltar.

Tais fatos foi o que pilotou o assunto da resenha com Raul. O melhor amigo de Levi, no outro dia, intrigou-se com a questão, e envolveu-se no projeto. Essa é a lei da infância. Felicidade só é felicidade quando compartilhada. Que boa notícia. A peça, tão impossível de ser encontrada, estava em mãos. Que estranho, de tão bom. O burro era agora cavalo de verdade. Mesmo os adultos teriam de admitir. A brincadeira ficou séria. O confidente, surpreso.

— Então, já está tudo pronto, disse Raul, feliz, com os dentes amostra. Silêncio. Instante de reflexão.

— Não Raul. Ainda não... Tá quase, ainda...

— Quase?

— Sim. Ainda falta uma coisinha.

— Mas o quê? O que-que ainda falta?


*

Faltam dez minutos para o meio dia, o sol a pino, descarregamento acontecendo, apesar de tudo. Homens são corpos suados e vontade de almoçar. De beber água, de beber algo. Desejos negados. Portanto ao trabalho.

Ninguém está homem feliz; ninguém diz nada. Primeiro, a obrigação. Cada um faz o seu em silêncio, e pronto. E é exatamente por isso que todos estão unidos na intenção de acabar a tarefa. E lá vem coisa. Lá vem cerveja; refrigerante; nota, para conferir. Lá vem água, não para beber, apesar da sede. De quando em quando alguém entra, confere o resultado do jogo do bicho, e sai. É bom evitar conversa com o dono do bar em momentos de cálculo e anotações, todos sabem.

Apesar de coletivo e visível, mau humor não atrapalhava os cidadãos em suas atividades-fim, na agitação normal de qualquer dia meio dia (dez minutos passara-se). Silêncio; fome, e cheiro de comida. Silêncio, carregamento de água, e sede, cada vez mais forte. Silêncio, e trabalho.

De repente bem de repente mesmo, no meio da confusão da má hora, seu Pedro pensou ter visto algo (dois vultos). Pensou ver sombras. Duas pequenas sombras, na entrada do bar. Benzeu-se de ação-reflexo – vai saber! Meio dia é hora traiçoeira. Hora que o coisa ruim está na rua. Passou com as vistas, mais uma vez, pela frente do bar. E não é que, no que foi; e voltou; pousou as vistas. E pimba, teve certeza. Não, não era miragem: havia, sim, duas coisinhas na entrada da birosca.

Dois garotos, ao pé do balcão, diante de seu Pedro, olhando-o, com cara de quem quer pedir. Problemas. Coçou as costas da cabeça. Chegada de criança nunca é bom sinal: amolece demais a mulher quando tá na barriga; só faz chorar quando nasce; desobedece quando grandinho, quer ser mandar na casa que não comprou quando cresce. E, se cai doente, é culpa do adulto. Mas que jeito? Era o filho do saudoso Zé Jorge, e de Ari. Filho de conhecido é ainda pior, que tem que atender, e atender bem.

O pior eram as caras, de querendo pedir. Seu Pedro teve uma péssima previsão sobre a prévia daquela visão. Diálogo desnecessário com menino àquela hora? Saco! Teria mesmo que ter? Ponderou. Não, não tinha. Não ia acontecer. Não ali. Não naquele momento. Ainda assim, manteve-se aprazível, quieto, e estudioso.

Silêncio.

Tinha só que se livrar das muriçocas. Buscou usar sua técnica de intimidação mais sofisticada, aplicada quando não podia aplicar castigos físicos. O olhar dúbio. Era mirar vista no meio da dupla de aspirantes a interlocutores. Nem em um, nem em outro; no meio. Esta ação faz com que os interlocutores acreditem que o observador tem o super poder de olhar duas pessoas simultaneamente. Isso faz com que as vitimas deste golpe caiam em um estado de incômodo e altíssimo constrangimento. O velho concentrou-se ali, na fresta entre os ombrinhos. Levi e Raul, inevitavelmente, cederam ao olhar intimidador.

Não podia ser diferente. Seu Pedro era implacável nesta ação. Era esse o ás que o senhor sexagenário tinha na manga, que desequilibrava o qualquer um que a ele se contrapusesse. Ás que agora dava ele larga vantagem na primeira fase, da vista, ates da primeira frase da entrevista silenciosa aos perturbadores da ordem.

Apostava que esse método de coação não gestual iria varrer dos garotos, em segundos, a vontade de interação. Foco! Foco. Os meninos congelaram, era fato. Os meninos congelaram, porém, não fugiram. Era hora de avançar ao segundo nível da ação exclusiva. Com um movimento de cabeça o senhor deu uma queixada no ar. Aquele movimento correspondia a um "é o quê?" silencioso.

Sem resposta, o silêncio, e o claro desconforto perdurava. Mais duas queixadas no ar, mais rápidas do que as duas primeiras. A intenção era falar o menos possível. Já que tinha que se comunicar com aquelezinhos, que fosse sem palavras, para não dar ousadia. E esperava a resposta dos pequenos. Não veio. Hora do nível três: ignorar os garotos a partir dali, e esperar que saíssem, uma vez que já haviam sido atendidos. Abaixou as vistas; voltou novamente a folhear, a conferir notas fiscais como se na entrada do bar não existisse mais ninguém.

Todavia, nada aconteceu. Os meninos congelaram. Continuaram ali. Estavam, sim, com medo, mas permaneceram ali, na entrada do bar. Ainda em silêncio e de cabeça baixa, o senhor avaliou o roteiro de suas ações. Primeira fase do plano, o olhar, ok. Esperou.

— A gente quer uma coisa...

— Fala.

— A gente que-

— Fala logo!

— A gente quer uma coisa que está lá atrás...

E foi aí que o senhor desviou as vistas para Jorge Levi. Era a primeira vez colocava os olhos naquele metrinho de gente. Hora do último recurso.

— Sai daqui! Peste! Vai azoar seu pai, peste! Arre.

Funcionou. Essa frase foi o fim para o menino Levi. Abaixou a cabeça, caminhou, saiu do bar-depósito. Saiu dali a não ouvir-se as passadas, murcho em marcha. Iria para casa.

Do lado de fora do depósito, depois da saída de Raul, os dois pararam a passos da porta do carrasco. Estátua Levi, estremecia, em choque, movia-se apena por correr de lágrimas. Queria apenas sair dali. Contudo, Raul, sempre frouxo, não tremia dessa. Ao contrário de amigo, que caminhou lentamente para mais longe da porta, o medroso quatro olhos asmático tomou coragem não se sabe de onde, voltou e se lançou novamente ao estômago do vão onde somente engradados, de cerveja e refrigerante, barulhavam.

Assustado com a atitude inesperada e silenciosa de Raul, Levi parou onde estava. Queria saber o que se passava, mas manteve a distância. Apenas olhava a porta. Nada notável, nem a olhos nem a ouvidos, acontecia. Curiosidade só aumentava. O que iria, o lerdo do Raul, fazer? As expectativas todas negativas, mas, quando se a intervenção se dá na intenção de ajuda não custa apostar e acreditar que o improvável aconteça. Improvável e impossível são palavras diferentes.

Por isso esperava Raul voltar esbaforido lá de dentro, um segundo depois de ter entrado, vítima de algum grito. Mas não aconteceu. Um diálogo quase silencioso iniciou-se, e se alongou. Estranho. Eles conversavam lá dentro. Era fora do real. Raul estava conversando com Seu Pedro.

Eternos seis minutos se passaram, e eis que se move magicamente por entre a porta, retangular, de madeira podre, o corpo de Raul. Ileso, era incrível. Sorridente, era absurdo. A partir daquele momento ele seria o garoto que apagou com um só ato todo seu histórico de froxura no bairro.

Para Levi, agora Raul era, a partir daquele momento, e seria, para todo sempre, o mais-mais de todos. A expressão era de feliz. E, o objeto dos desejos, pasmem, estava na magra mão do míope. Levi, incrédulo, fez desabrochar o sorriso mais belo, o sorriso com a marca da eterna gratidão. Era a tal da proteção, a proteção tão desejada.

Com a boca estirada, rindo sem gargalhar no fundo da cena, Seu Pedro balançava a cabeça positivamente. Olhava Raul e ria. Era a admissão da derrota. Que menininho ruim de ignorar. Recado dado, recado entendido. A tarde foi perfeita.


...

No outro dia era o dia D. Fim da tarde, hora da verdade. Com as adaptações feitas dos pés a cabeça, o grande herói está pronto, e montado. Nada mais faltava. O começo, boca do beco, donde desemboca quem sai e quem entra, quem se movimenta.

O céu, alaranjado por conta de um mágico sol poente de fim de tarde, que pousava sobre as casas sem queimá-las. O momento exato se aproxima. Raul está na reta-guarda. Será e terá prazer pra ser testemunha ocular dos fatos. É personagem principal da historia dele, de óculos novos. O outro vai à frente, com indumentária de cavaleiro. Hora da última conferência. Pé: sandália velha, com lata de sardinha. Espada de pau caixote, aqui. A rubra capa; arruma as costas. Cavalo, entre as pernas. Cabeça, bem ali. Cabeça de cavalo, sem discussão. Adaptação perfeita.

Tudo pronto? Ainda não. Faltava a última coisa, a última proteção. A proteção do mundo mais valioso ao redor: a cabeça de Jorge Levi. A proteção sagrada é na realidade nada mais do que uma proteção plástica da garrafa gigante de vinho barato. Proteção verde, cor da esperança. Nada podia ser mais perfeito para resguardar a cabeça de uma criança do que a esperança. O pequeno de Dona Julia era isso: esperança.

Aquele objeto estava no lugar certo. Naquela mente, sim, residia tudo isso: a esperança e a vontade de construir um mundo novo. Era um tesouro digno de ser protegido. A esperança de migrar para um mundo mais agradável, longe do cotidiano, de dor, solidão, perda.

Está agora com a cabeça em seu mundo encantado, e muito bem protegido. O cavaleiro está projetado na entrada da minhoca de ar, na boca que cospe vento. Todos olham com estranheza, o cavaleiro ignora. O cavaleiro é superior a todos, em fiel à missão. Missão bem simples: passear a cavalo, na corrida de dupla utilidade: testar o uniforme de cavaleiro; esquentar o sangue para vencer o maldito banho frio. Lá vai ele, preparado para disparar.

E START!

Saiu em disparada, sem mais, sem cessar, sem parar, sem vacilar. Saiu. Como uma bala, sem tremer, sem chorar, sem pedir licença nem avisar. Foi, como flecha atirada, palavra falada que não tem mais volta. Partiu e partiu muito bem para um simples arranque de reles menino fantasiado. O teste começou bem. Vai ele em disparada beco adentro, inalcançável.

Raul saiu atrás e ficou bem pra atrás. Ele, com alguma dificuldade, insistiu em acompanhar. Era estranho aquilo, muito estranho. Sempre foi fácil seguir o melhor amigo no mesmo pé. Naquele fim de tarde, contudo, percebeu que algo em Levi mudou. Estava diferente. Mais veloz. Verdade era que, depois de pôr o capacete, ele parecia ter se transformado em outro menino; num super menino. Haja sebo nas canelas.

Lá vai Lá vai Levi, leve-leve. Que velocidade! Percebeu isso por que viu que aos outros meninos também era impossível se equiparar ao seu melhor amigo. Era incrível a cena. Incrível! Inenarrável! Os outros garotos, ainda que pés tivessem, não o alcançava. Ainda que tivessem mãos; não o tocavam. Ainda que tivessem olhos, os garotos não o viam.

Linhas e rabadas das pipas arrebentaram-se, sem o corpo do bento amarrar. Era também invisível! E como o que não é visto não é lembrado, não o puderam; nem em pensamentos; fazerem-lhe mal. Jatos de água, de as armas de água, o corpo de Levi, não alcançaram. Invencível! E assim passou! Livrou-se, de tudo, e de todos os perigos. De todos os males. Era o incrível, invisível, invencível. Super-Levi. Vestido, com as roupas, e as armas de Jorge.

E sim, enfim, fim. Da corrida. Da missão De tarde. Saudação ao céu. A Lua apareceu! Referência! Reverência! Espada erguida ao céu. A bênção pai!

Salve Jorge.

Da Capadoce.

Da Capadoce