quinta-feira, 8 de julho de 2021

O Vitorioso

Dez horas e finda mais um dia de trabalho, mais um dia difícil. E o anterior tinha sido o pior de todos. A capacidade de transformação é algo com a qual não se deve brincar. Nem das coisas, nem das pessoas. Nada é ruim o suficiente a ponto de não poder piorar. Sim, o subsolo do fundo do poço existe, infelizmente.

O menino, homem recém-formado naquele momento, encontrava-se esgotado passado mais um dia de trabalhado. Condição inimaginável, dias antes. Era só um filho, comum. Todo absurdo aconteceu com a mesma velocidade do sopro repentino que, em dois tempos, arrebatou a vida do seu pai. A madrugada do último dia de março chegou e trouxe para ele, em seus primeiros segundos, a pior grande mentira que já ouvira: estava tudo bem, era hora de seguir em frente.

Como assim, tudo bem? Como seguir em frente? Não interessava. Ninguém respondia. O pai foi enterrado ainda no primeiro de abril, com sol alto. E, no dia seguinte, as cobranças já rondavam a casa, como tubarões rodam barcos. O que vai fazer?

Era hora de encarar dificuldades, assumir obrigações. Roupa de menino não dá em homem. A hora de ser homem chegou. E não de ser qualquer homem, o homem da casa. Cedo demais. Mas chegou, a provação terrível, que já começou com a tarefa de ter que informar à mãe, o que ouvira do medico, no corredor do hospital. Acordar a mãe, para Jorge Vitor, já foi desumano. Informá-la sobre o ocorrido foi um verdadeiro pesadelo...

Não ter para si um ombro, e ter de dar, para sua mãe, o seu foi desolador até para a médica testemunha única do evento. O ombro, ontem bengala do pai; hoje, bengala da mãe desolada. Pior momento da emancipação precoce. Com certeza, Deus não estava ali. Tempo que passa. Paciência. Deus sabe de todas as coisas. Dali ao cemitério. E acabou-se.

O pai se foi. Agora alguém tinha que fazer a engrenagem girar. Essa condição se maturou com o avanço avassalador da doença do pai, depois de descoberta. Três meses em três palavras, e sem vírgula. Assim iniciou e findou a vida do chefe da casa. Engraçado, o ser humano. Nove meses para nascer, estalo de dedos, para morrer. Mas, por mais triste que fosse para Jorge Vitor enterrar o pai num caixão doado na tarde do dia da mentira, essa ainda não era a dor maior. Pior mesmo foi perceber se chorasse no quarto, choraria em vão. E foi assim que Jorge Vitor aprendeu que alguém tinha de fazer alguma coisa. E esse alguém era, naturalmente, o filho mais velho.

Passar a ser acionado pela mãe o fez deduzir que algo mudou. Jorge Vitor era o homem da casa. Era tímido, porém, logo aprendeu logo a falar alto, e para estranhos. Uma transformação em vendedor ambulante era, meses antes, impensável. Em uma semana a coisa mudou. Vestir o colete e apostar sorte na boa vontade dos motoristas foi desafiador. Conseguir digerir situações e transformações exigiu dele o domínio de habilidades inimagináveis.

E, para Jorge Vitor, ser o homem da casa; trabalhar para ajudar em casa, essa com certeza não foi a sua pior tarefa. Para ele nada, nada, se comparava à segunda tarefa de adulto: cuidar do irmão caçula.

Ele lembrava que ouvia os avisos da avó. "Vem aí uma espoleta..." E a profecia se cumpriu. A casa mudou para sempre, depois do nascimento de Jorge Levi, que ninguém detinha. Ninguém vírgula: "só pai. O pai, com as histórias de Caipora e num sei quê. Só aquilo segura o peste, nada mais! Só aquilo ali mesmo..." Assim pensou enquanto voltava para casa. Pensou profundamente, refletiu, caiu em si. E foi caindo, mais e mais, cada vez mais. Até que se, amargamente, corrigiu: "Se só pai... Então... Ninguém mais segura Levi..."

O problema estava em Levi, todo emoção, que testemunhou por três infinitos dias a derrocada do pai herói, a tormenta na casa. Era esse garoto que Jorge Vitor sabia que, em seu íntimo, não aceitava ter acabado a graça de sua vida. A seriedade que se arrumava silenciosa pela manhã e saía. Ao trabalho. Carregar materiais de construção com o cavalo. Voltar ao meio dia, agora mais falante, para almoçar. E volta à labuta. O herói que, de vez em quando, ia buscar na Escola. O sábio das historinhas repetitivas, contadas ao final do dia. Era a perda desse homem que era inaceitável para o menor. Aquilo não podia ser. Era uma mentira! Tinha que ser! Um primeiro de abril.

Sim. Era, aquilo, de fato, um primeiro de abril. Mas, não, infelizmente não. Era tudo verdade. A pior. A pior verdade do mundo acontecida, irônica e infelizmente, nas primeiras horas do dia da mentira. Sem sentido. Inaceitável. Qual é a criança que aceita a morte de quem a põe para dormir de bom agrado? Jorge Vitor sabia que, embora o seu irmão mais novo mostrasse um entendimento inicial assustador sobre o acontecimento, aquele coraçãozinho de oito anos tinha chagas abertas.

Por isso sabia que mais difícil do que encarar a indiferença de estranhos aos seus problemas diários no coletivo seria ter de estar pronto para segurar as pontas quando a bomba estourasse. A bomba estourou. Passado trauma, mau comportamento aflorou em casa. A cada dia, um limite novo, estabelecido pela mãe no dia anterior, às vezes pela manhã, era ultrapassado. Na escola, uma semana pós-tragédia, Levi deixou de ser vítima. A paciência e a simpatia da professora acabam. Menino figurava entre os piores da turma. O clima era muito ruim...

Jorge Vitor não sabia o que iria protagonizar porque até ali o dia era comum. Nada de especial. Por isso acreditava que também seria uma noite comum. Em instantes chegaria em casa exausto, e tudo iria se repetir. A mãe estará em casa. Ela interromperá o que estiver fazendo assim que vê-lo abrir a porta. Primeiramente ela iria recebê-lo, e depois iria iniciar-se a passar as informações do dia, como fazia com o pai.

A mãe reclamaria da falta de água primeiramente. Isso aconteceria logo que ele destampasse da porta, e se estenderia pelo momento em que ele estivesse ainda deixando seus materiais de trabalho pela sala. Podia ver: ele na sala, sentado, e ela, de pé, falando, na porta da sala que dá acesso ao corredor de acesso à cozinha. Quinze minutos. Quinze longuíssimos minutos. Passada a primeira, e previsível queixa-padrão, a mãe agora iria girar a metralhadora de lamúrias para os preços das coisas. Do ônibus velho, que quase não aguenta subir a ladeira.

O motorista imprudente. Dos passageiros, também; que falam, falam, e só falam. O bairro ruim, que é longe do trabalho; é violento, e parece o fim do mundo. Do lixo, que fica no campo de barro do bairro. Os homens daqui – tudo porco – que Jogam futebol no campo cheio de lixo. Deus é mais...

A praça com um jardim sem uma folha. As crianças – desbocadas – que não respeitam ninguém. E as musicas que ouvem? "Só Jesus viu? Só Jesus..." Depois de tudo isso, a mãe, como se não bastasse, faria agora o trajeto de volta, até voltar ao trabalho.

E, lógico, que a última parada dos lamentos chama-se Jorge Levi Boa Morte do Nascimento. Por mais impressionante que pudesse parecer, a lista de queixas do caçula seria ainda mais extensa do que a anterior. Onze horas da noite. Depois de duzentas e tantas horas falando, a mãe silencia. Mas não é um silencio qualquer. É o silêncio que pede respostas.

Vitor bem sabia que aquele silêncio o colocava em obrigação de falar com seu irmão, de aconselhá-lo. De tentar, inutilmente, fingir que ajudava a mãe na custosa campanha que se tornou educar Levi depois da morte do pai. Teria de fingir para o irmão mais novo que ele agora figurava entre os membros de alta patente da família, e que devia ser respeitado. Sabia que seria ignorado pelo garoto. A mãe o apoiaria. Mas não o faria por vontade de pôr ordem na casa. Dona Lida faria o que faria somente por temer a desistência do mais velho do cargo de responsável pela casa. Repreenderia o menor, aos berros.

Berros que logo cessariam, por causa dos vizinhos, conspiradores que não podiam saber da crise. Caçula ignoraria ambos, como já vinha fazendo há tempos. A mãe perde o controle, e bate. E aí não dá outra: sob o pretexto da surra, choraria o menino. Com o benefício da dor física, ele teria a justificativa para espernear. E aproveita bem a oportunidade. Se jogaria no chão, um show.

Todos em casa saberiam que na verdade a dor que corroía o coração do menino era outra. Pirraça... O choro sem consolo seria longo. Ignorando as ordens para que parasse com a descompostura, o mais novo continuaria chorando. Continuaria, por intermináveis três... Cinco minutos. Faria isso, até que, sem que ninguém percebesse, deitaria no sofá, começaria a chupar dedo, e dormiria; exausto.

A mãe agora corre pro banheiro. Liga o chuveiro e põe um balde para parar água. Mentira. Na verdade, ela usa o barulho da queda d'água para suprimir os gritos. É preciso ser inteligente até para chorar em paz na periferia. Choraria a mãe. Depois. Depois e somente depois, na cama e em silêncio, remoendo dores de outro dia amargo, chegaria, a vez dele. Agora, com luzes apagadas, sem dor física, nem camuflagem sonora, choraria, no modo mudo, Vitor coraria. Desgraça...

De repente, num passe de mágica; no estalido instantâneo, despertou de sonho, e se impressionou quando se viu de olhos abertos, no portão de casa. Olhou para o lado. Vizinhos festejando, nada de mais. Estão sempre bem. De vez em quando, as festas acabam em quebra-quebra, mas se amam. Abriu o portão... Ainda no portão de casa olhou pra atrás, por cima do ombro. Observou mais uma vez o evento. Dessa vez, sem ressentimento, sem ódio, sem sentir-se incomodado com a alegria alheia. Apenas observou. Sorriu...

E enfim, agora sim, de volta a si e munido de toda consciência e resistência física que conseguiu reunir; baixou os ombros; suspirou; e se preparou para seu (triste) fim de dia comum. Entrou. Estava na varanda.

Faltava ainda subir a escada para alcançar a porta. Quando lá pousasse, deveria estar pronto para entrar e receber o presente previsível de sua mãe. Tudo, exatamente tudo imaginado pelo rapaz iria acontecer. Lá vinha a metralhadora de verdades. Subia, vencia, a contragosto cada um dos seis degraus que o levaria à porta. Subia. Vencia-os lenta, mas muito lentamente. Ao passo que subia, sentia que algo em si desabava. Perdia as esperanças a medida que subia a ideia de deitar para dormir. Acabou a escada. Chegou, enfim, à porta de casa.


...

Dez e dez da noite. Mais um dia de trabalho terminou, e começa uma noite pior ainda. E a anterior, ele podia jurar que tinha sido a pior de todas. Realmente: a capacidade de transformação é algo com a qual não se deve brincar. Nem das coisas, nem das pessoas. Nada é – ou está – ruim o suficiente a ponto de não poder piorar.

Sim, o subsolo do fundo do poço existe, infelizmente, e é lá que Jorge Vitor e encontrou. Impressionante como uma simples porta pode servir não só como acesso; mas também como uma divisão de mundos. Mai do que incomodado, Jorge Vitor se sentiu traído, quando abriu a porta de casa e não viu a sua queixosa mãe rumar em sua direção. Olhou o interior da casa, e o que era aquilo?

É realmente impressionante o tamanho da capacidade de uma criança de arrumar seu mundo desarrumando o mundo dos adultos. É inenarrável. Os brinquedos encontravam-se espalhados por toda parte. E o garoto ironicamente não brincava com nenhum deles. Forro do sofá? No chão lameado com água e sabão, que ali mesmo se fazia em uma trilha de pegadas, que a cada ida e vinda do pequeno, se atualizava com marca de pé. O som e a TV estavam ligados. Quase no último volume. Um absurdo. O cansaço virou fervor; a calma, adrenalina; a letargia, um estado de alerta para qualquer sentinela em serviço.

Perguntava-se durante todo tempo como ele não ouviu aquilo do lado de fora da casa. Onde estaria; o que estaria fazendo a mãe a uma hora daquelas, na rua ainda?

Não conseguia acreditar no quão fabuloso foi o poder de concentração que lhe pôs tranqüilo em seu entorpecimento anterior a ponto de, a um passo da porta, não ouvir a barulheira dentro da casa. Pensando bem, queria era voltar no instante anterior. Desejava somente isso, como quem deseja que não se encerre um sonho bom. E o sonho era esse, bem simples: estar em qualquer lugar, exceto em casa. Interessante era regressar àquele paraíso psicológico, era o que o interessava.

O primeiro olhar desanimava. Jorge Vitor desanimou-se com a imagem da sala absolutamente fora de ordem. Não sentia o menor interesse em entrar e sentar, não era obrigação dele. Não queria lidar com aquilo. Não podia, e sabia que não podia. Tratou logo de procurar o socorro, a mãe. Em vão. Nem sinal. Nem sinal de alma viva na casa. O pequeno bagunceiro irmão-caçula estava só e só tocando o terror.

Avançou dois passos, e olhou, por dentro, para a mesma parede fronteira da casa. Buscou o relógio, que ficava sobre a porta. Dez e vinte e dois. Depois de se assustar com a, ainda não explicada, ausência da mãe, veio o susto, quando retornou a atividade de observador e assentou o olhar para a cena que testemunhava.

Observou a sala. Ou no que o cômodo havia se transformado, e respirou. O raciocínio lógico, depois de alguns instantes, começou a se reinstalar e a operar na cabeça do rapaz. Recuou, saiu de casa no mesmo pé que entrou. Deduziu que, para aquilo estar acontecendo, a mãe com certeza não estava em casa. O vapor quente que veio do interior da casa denunciava que aquele corpo estava ali, operando naquele ritmo havia horas. A tarde toda naquela batida. A mãe logicamente ainda não tinha chegado do trabalho.

E que golpe de ar foi aquele? Vapor quente desgraçado! Caçula derrubando tudo. E a mãe que não chegava. Calma, tinha que manter a calma, se concentrar. Estava difícil. Maldito vapor quente. A sala foi transformada em um pedaço do inferno. De tão quente que estava o local, Vitor não conseguia pensar em outra coisa.

O personagem núcleo do caos era aquele pequeno corpo que promovia a mega-desarrumação na casa. Que gritava, comemorando, em meio à bagunça que se tornou a sala. E que, para dar maior terror a cena, ria, ria. Deus é mais.

Vitor avaliou o causo e a causa. O inferno estava ali, criado pelo menor. Ele, como irmão mais velho, quase um homem, precisava se decidir. Se decidir em momentos difíceis, é o que um homem de verdade faz. Então, como um homem decidiu que iria tirar o corpo fora daquela responsabilidade. Um homem deve assumir as suas obrigações. A possibilidade de se eximir daquela tarefa exposta na sala era um privilégio do qual não quis se desgarrar. Como homem que era, assumiu que seria covarde, para o bem de todos.

A esquiva era, para Jorge Vitor, além da atitude mais prudente a ser tomada no momento, um movimento físico-mental involuntário. Sua ante-primeira opção era evadir-se de qualquer extra. Era uma questão de instinto. Convenhamos: quatorze horas de pé trabalhando, quem iria pegar um serviço não-remunerado daquele gabarito, podendo sair de baixo e deixar para a autoridade competente do lar?

Não mais iria ver o que viu quando entrou. Apagou da mente a desastrosa de arte que viu; fechou a porta, trancou-a; virou-se para a rua, e começou a assistir a festa dos vizinhos, decidido a esperar pela chegada da mãe. Devia se concentrar somente no socorro, agir com paciência, e esperar.

A demora se alongava. Vitor sofria. Por mais que os ouvidos pedissem, o portão não fazia barulho. Por mais que os ouvidos não pedissem, dentro de casa fazia som. Que estranho, e triste. O próprio Vitor já se compreendia como atrasado em seu regresso ao lar; como podia a mãe demorar mais do que ele para chegar depois do trabalho? Algo estava estranho. Será que não viria? Não. Equilibrou-se novamente. Ela vem. A mãe iria chegar. Ele tinha que apostar, e apostou todas as fichas nesse pensamento. Ela iria chegar, bater no caçula, todos chorariam tristes. Mas, eles iriam dormir em breve. O anterior pensamento desagradável sagrava-se em sonho de consumo, objeto de maior desejo do jovem.

Retomou a calma. Selou em sua consciência o contrato mental com a abstenção da causa, não tinha mais como voltar. O aprendiz de feiticeiro seria julgado pela bruxa má, não por um mediador impotente. Agiu em procura da cura, levantou-se do batente da porta, avançou um passo, e encostou o peito no muro que separava a varanda da rua. Queria ver o mais longe possível do beco. Começou busca visual. Apertou os olhos.

Encostou-se mais no muro, estirou-se, esgueirou-se, quase que projetando metade do corpo para fora do vão pré-casa. Esgueirava-se. Precisava ver longe, mais longe possível. Estirava-se, todinho. Agora, onde estava anteriormente o peito está barriga, resvalando no muro. No chão, os pés em meia ponta, a ponto de pôr invejoso qualquer bailarino, impulsionavam o corpo do jovem aos céus. Este era Jorge Vitor naquele momento, todo vontade de ver a mãe. Estirava-se na varanda da casa com dedicação exclusiva à execução do exercício mais importante do momento: olhar, para direita e esquerda. Dessa vez já não tinha nenhum interesse na festa vizinha. Seus olhos buscavam somente o corpo magro, com um vestido longo, uma bolsa na mão, e um pano na cabeça. Por isso, olhava, para lá, e para cá, reiteradas vezes. Faria isso quantas vezes fosse preciso, durante o tempo necessário.

Permaneceu ali, repetindo por intermináveis quinze minutos o mesmo movimento. Virando a cabeça. Parava. E, depois repetia o movimento, virava... Lentamente. De cá... Para lá... De lá... Para cá... Buscando a mãe... Em vão...

Até que entendeu. A mãe... A tão esperada mãe... Não chegaria... A ficha foi caindo... Caindo... Caindo. Até que o moço chegou ao entendimento de que a boa sorte o deixara esperando. Alguém precisava fazer alguma coisa. Voltou-se para a porta; agora resignado, disposto a cumprir o seu real destino. Inspirou. Respirou. Pôs, pela segunda vez, a chave na fechadura... Destrancou a porta; olhou para dentro, e entrou silencioso, no lar barulhento. Estava triste de ter de ver aquele quadro, novamente, mas, ainda assim, iniciou-se a tarefa de observar.

Por prospecção, visualizou a surra que Levi tomaria caso a mãe entrasse, arriasse as malas, e se percebesse inserida naquele cenário. Seria um desastre. Ouviu, também por prospecção, o que a mãe falaria com as paredes. Mas como é que uma pessoa vê as coisas dentro de casa errada e não faz nada; e fica parado, com cara de pamonha? Que saco.

Pausa mental. Mundo no modo mudo. Não importava o que acontecesse, o encontrágico devia ser evitado. Alguma coisa precisava ser feita. Viajava nos pensamentos, quando foi surpreendido pelo pequeno corpo que corria desgovernadamente pela casa; vacilando no chão ensaboado; ora subindo, ora descendo do sofá, indo da sala à cozinha, gritando, voltando, se jogando no sofá, e rindo. Rindo escandalosamente.

Quando entrou e estacionou na porta da cozinha viu que o quadro de horror ia além. Perdeu a cabeça com a torneira aberta; se desesperou ao ver a vassoura de ponta cabeça, sujando a parede com as cerdas. Dali mesmo olhou, mais uma vez a parede. Rapaz, dez e trinta.

Foi quando o resvalo o vez voltar à realidade. Finalmente, depois de uma rápida análise, entendeu a brincadeira: a criatura saía do sofá, passava correndo pela sala, fazia a curva a direita, passava pelo corredor, entrava pela cozinha, acelerava. Avançava até o final da cozinha e, a dois passos do fim do vão final da casa, saltava, chutava a porta dos fundos, que provavelmente julgava ser o inimigo, porque voltava acelerado, e olhando por cima do ombro, qual seria a reação do adversário imaginário. Mas ainda tinha um detalhe: no mesmo instante que chutava a porta, ainda no ar fazia, ele mesmo fazia um barulho com a boca. Era a explosão do golpe. E o corpinho matava as saudades do chão aterrissando no pé esquerdo. Dava meia volta; e voltava.

E lá ia ele, novamente... Sofá... Sala... Cozinha... "Pá"... Cozinha, sala... Sofá... Sala... Cozinha... Porta dos fundos... "Bá". Voltava fugindo do inimigo invisível. Para o único espectador o pior era assistir ao menor continuar a brincar alucinantemente, como se ali não tivesse chegado ninguém. Ninguém que significasse interferência ao seu mundo particular.

Vitor decidiu então que resolveria o problema. Parou. Ignorou os sons. Sentou-se no braço do sofá. Fechou os olhos e chamou o irmão, e, como já era previsto pelo próprio, foi ignorado. Tornou chamar. Nada. Apelou. Mão no ombro. A resposta à interdição não tardou a vir em forma de gritaria. Vitor perdeu a cabeça.

— FALE BAXO! Você quer apanhar, quer?

A pergunta já foi feita com o mais velho segurando o mais novo pelos braços, e gritando histérico. De um lado, a voz que chora apenas para ser atendida por via de apelo à chantagem emocional. Do outro, a da razão que apelava para se fazer reconhecer – a pulso – como merecedora de uma nova patente de respeito no ambiente. Ponto. Silêncio. Um silêncio perturbador instaurou-se entre ambos. Levi estava contrariado, mas se deu por vencido. Esperava ordens. O irmão, Vitor, por outro lado estava desesperado. Tinha conseguido o silêncio do menor, mas não sabia conduzir a situação. Os olhos de Jorge Vitor estavam fincados em Levi.

A mente do menor moveu-se, brusca e tragicamente, como placas tectônicas em terremoto, traçando o mapa horrível do que seria sua irmandade futura. Ele fez o que pôde para salvar o irmão, mas não deu. Jorge Vitor era mesmo um adulto, um maldito adulto. Leis; interdições; imposições; e condições; era o que deveria esperar do traidor de agora em diante.

— Senta aí, Levi, por favor.

E o mais novo sentou-se. Vitor emocionou-se, quase não tinha reação. Quase não conseguia comandar, de tanto que estava incrédulo, diante da situação de obediência do mais novo. Graças a Deus não precisou bater. Mas, sabia que tinha que continuar sendo duro.

— Olha: quem aprontou foi você, então é você que vai arrumar tudo de novo! O mais novo nada dizia. Apenas obedecia aos comandos. Tudo corria num silêncio e amargo medo. Até que, Vitor se excedeu, e cometeu um pequeno erro. — Vá, que na volta a gente toma café, e na volta eu te conto uma historinha. Até você dormi...

— Oi? Essa foi à única hora que Levi respondeu sonoramente ao irmão. Ele olhou assustado e ficou parado, esperando ouvir novamente o que lhe havia sido recomendado. Sim, ele iria ouvir uma história.


...

De repente, Vitor apurou o que havia dito e, muito mais do que se surpreendeu, se arrependeu. Cometeu o grave erro de prometer algo a Levi. Sim, percebeu. Mas, já era tarde. E algo que possivelmente não seria capaz de cumprir. Desatenção. Só por que teve obediência, se empolgou, quis premiar o subordinado com algo. Erro grave. Era tarde.

Não havia mais nada o que fazer. Era encarar o destino como havia feito até ali. Era ter força para encarar a sua...

— Batalha épica?

— Sim.

— Não sei o que é que é isso não!

— Como assim, não sabe?

— Sei mais ou menos. Conta aí a historia.

— Tá bom. Silêncio a partir de agora, tá bom?

Bom... Dizia uma lenda antiga que, depois de mil anos, um Dragão surgiu para amedrontar um certo povoado... O povo da cidade ouvia rugidos assustadores vindo do céu.

— Do céu?

— Sim, do céu! E foi assim. Assim que começou o grande conto contado por Vitor para Levi. Com atirada da dúvida de quem duvida. Sobre o que seria uma batalha épica.

A ideia foi arranjada das coisas do pai. Num quadro que um dia foi fundo de relógio. Nele, o bravo guerreiro vencia o Dragão. Dali partiu a ideia. Uma batalha extraordinária.

A narrativa continuava, discorrendo sobre o desconhecimento sobre o autor do barulho. Ninguém imaginava o que era aquilo! Só ouviam os barulhos que pareciam raios; trovões. Eram trovões, na verdade! Trovões-travados.

— Como Raio?

— Sem interromper! E o mais velho já tinha o domínio da narrativa. Era tudo como ele quisesse. E ele optou pelos raios. Sim, eram raios... Bastava a Lua estar no céu para o pessoal ouvir os estrondos infernais. Em noites de Lua cheia era bem pior.

Depois de muito, muito, tempo ele se revelou; apareceu pro rei. Rei? Silêncio. Desculpe. Sim, rei. Não se sabe o que conversaram, mas depois desse dia o Rei se desesperou, e saiu a procurar por alguém que enfrentasse o Dragão no prazo de um ano. O tempo passou e como o rei não tinha como combater o Dragão, decidiu avisar que quem derrotasse o monstro poderia se casar com a filha dele e da Rainha Dulce, a linda Princesa Néia.

O candidato teria seis meses para se preparar. Muitos homens se encorajaram e pensaram em ir. Iam ao castelo e eram bem recebidos por lá. Mas quando a noite chegava junto com a barulheira, todos desistiam. Ficavam com medo e voltavam para as suas cidades, envergonhados...

O tempo passava e o rei se entristecia. A cada dia, o abatimento era maior. Até que, faltando dois dias para o prazo vencer, um homem comum, foi ao rei e pediu a ele para ir ao ponto mais alto do castelo do Vale. Ele queria enfrentar o Dragão. O rei inicialmente duvidou do homem, duvidou até que ele era guerreiro, mas... Como não tinha um soldado interessado em se habilitar para a tarefa, ele permitiu ao homem, o direito de morrer em combate.

Então chegou o grande dia, e lá estava ele, o guerreiro, Soldado Jorge da capa vermelha! Ele foi ao ponto mais alto do castelo e então subiu a escada, e alcançou a lua. Depois de subir a escada, ele assoviou bem alto, e o cavalo dele, que ninguém ainda não tinha nem visto, veio, e, com três pulos, também estava na terra do chão de brilho.

Depois, Jorge montou em seu cavalo, cavalgou um pouco pelo chão meio amarelado. Já não ouvia mais a voz de ninguém que ficou na terra. Era só o chão amarelo, o azul escuro do céu, e o brilho da estrelas, que pareciam vaga-lumes de níquel. Quando passou o nervoso do lugar novo, logo a frente, Jorge e seu fiel escudeiro puderam ouvir o barulho de um abanar de rabo. Dragão estava perto.

Enfim, os dois ficaram frente a frente com o monstro, se encarando: Jorge e o cavalo de um lado; a Fera monstruosa de outro. Ia começar. Se estudaram. Na ponta de cima da Lua em forma de "C" estava o Dragão, enrolado. A cauda dele estava em direção ao céu, abanando, era o que fazia o barulho. A cabeça, inclinada para baixo, olhava o Cavaleiro e rosnava.

O cavaleiro encarou o Dragão sem medo. Como estava na parte de baixo, olhava para cima, podia ver a cara e o corpo da fera como ninguém nunca tinha visto: era realmente um monstro ameaçador e amedrontador, qualquer homem se assustaria. O cavaleiro não.

O monstro era grande: tinha duas asas logo depois das patas dianteiras. A ponta do enorme rabo em forma de seta, tinha-se um poderoso osso perfurante. E no corpo, com a barriga amarelo aveludada, e as costas, verde escamosa e espinhenta, com quatro ossos em seu centro, concluía a visão de fazer tremular qualquer nobre guerreiro. Mesmo com tudo isso, Jorge não temeu...

O Bicho tinha, na cabeça, chifres enormes. Na cara, olhos ameaçadores, e um grande bigode, para finalizar. Como de gato selvagem. Do nariz saía uma fumaça que misturava com as nuvens e fazia elas evaporarem, de tão quente que era o hálito do monstro. Ele aproveitava para camuflar ali mesmo. A boca, com dois fios de bigode em cima, era principal arma da Fera. Era de onde ele ameaça as vítimas com seu grito ensurdecedor. Se não funcionasse, ele cuspia fogo em quem se atrevesse a não fugir de primeira.

Ainda assim, o cavaleiro permanecia montado em seu cavalo, em silêncio. Nada temia. Abaixou a viseira do elmo, e apontou a lança para a fera. A hora do combate tinha chegado. Soltou um grito, convidando a fera para o embate, sem recuar um passo.

E a luta começou com um indo em direção ao outro: O Dragão gritou e veio no movimento de um bote de uma cobra, Jorge agitou o cavalo e começou a galopar cada vez mais rápido em direção a cabeça da fera, com o braço da lança recuado, pronto para estacar.

O Dragão não era bobo. Veio de frente para enganar, simulou um bote com a cabeça, mas usou a calda para atacar o Cavaleiro por trás. Tentava furar as costas de Jorge. Não adiantou: O Cavaleiro estava atento e se defendeu com o seu escudo de bronze. E, no mesmo ato, atacou o rabo da fera com a sua lança, dando um furo na marca de seta que ficava no fim do fim da cauda do Bicho.

Com o primeiro grito do Bicho, Jorge aproveitou e cravou a lança num pouco mais acima da primeira ferida, pregando o rabo no chão da Lua! A fera começou a soltar fumaça pela venta. Ia cuspir fogo...

Duas bolas de fogo foram lançadas logo de cara pelo Dragão, tentando liquidar o guerreiro Jorge. Não foi fácil desviar, e pra piorar veio uma terceira bolona assim! Essa terceira ele teve que defender com o escudo! Foi diferente da cauda. Dava pra sentir o braço queimar, e dava pra ver o escudo ficar avermelhado. Só de defender aquele acarajé gigante Jorge percebeu que não ia poder defender outro. Foi quando veio a quarta, uma gigantesca bola de fogo.

Seu Jorge desviou por um triz. Sentiu que estava pressionado. E avançou determinado em acabar com o combate. Pulou em direção a boca da Besta, que já se preparava para atirar a quinta e maior de todas as bolas. A decisão se aproximava.

O final foi emocionante: Jorge, no ar, indo em direção a boca do Bicho, e o Bicho olhando para baixo com a boca aberta. Tudo na lua, estava avermelhando. O fogo já estava perto de sair da boca do monstro. Os dois pensavam só em atacar, mas o cavaleiro estava em desvantagem. Sua espada era pequena, e não alcançaria a Besta a tempo. A lança não estava mais com ele... E o Dragão ia cuspir... O Nariz começou a esfumaçar...

Mas, antes do tiro, Jorge, sabendo que ia ser seu fim se tomasse aquele ataque em cheio, arremessou seu enorme e pesado escudo de bronze na boca do Dragão, surpreendendo ele. O bicho, surpreendido e atordoando, ficou muito prejudicado, porque a bola de fogo, que já ia sair, ficou lá dentro da boca, o que foi muito ruim para ele. Foi quando veio o golpe mortal de espada, seguido de mai dois, que praticamente reduziu a zero a capacidade de movimentação da fera.

Surpreendido pela inteligência do guerreiro que colocou contra si a sua própria arma, o Dragão apenas tossia, ferido, com a cabeça tombada. O escudo impedia de cuspir mais fogo. Os cortes faziam ele se enfraquecer cada vez mais. A calda estava presa; não podia mais se mover. Estava entregue.

Faltava só o último golpe, o golpe de misericórdia. Mas, antes disso, a fera fez um esforço para ver, abriu os olhos, quis saber de algo. Ele queria sabe o nome do Cavaleiro tão destemido, que não só o enfrentara, como triunfara sobre si, ali, em seu terreno, na lua. Já desmontado e bem próximo, o Cavaleiro se assustou quando viu a Fera falar, mas, respondeu.

Jorge. Meu nome é Jorge. O Dragão piscava os olhos lentamente, falava com esforço. Estava nas ultimas, a morte se aproximava. Jo... Jorge. O seu nome... Será... eter... eternizado... Jo-Jorge... Jorge... Terás nome... de... santo... És... o... mais... forte... de todos... os homens...

Jorge, o cavaleiro o mais forte de todos os homens, não interrompeu o monstro. A própria quimera que, depois de reconhecer a força superior de seu oponente, disse a sua última frase: Agora... Faça... Pegue... A sua espada... O guerreiro retirou a espada... Ergueu-a... Ergueu a espada aos céus... Fez referência... E deu o golpe que gerou o último grito, ouvido por toda cidade.

Depois de morto, o corpo do Dragão foi se transformando em luz. Uma luz cada vez mais intensa... Mais clara... Mais clara; mais clara... Até explodir! Explodiu, fazendo a noite virar dia por alguns segundos... Choviam pequenos vaga-lumes... O ar foi ficando mais tranqüilo...

O céu e as nuvens, que eram alaranjados, voltaram as suas cores normais. Lentamente, nascia uma noite tranquila, como há tempos não se via. A escada sumiu, misteriosamente. Misteriosamente, o cavaleiro já estava no terraço do castelo, junto com seu cavalo, agora bem mansinho. O rei foi até a parte mais alta do castelo para se encontrar com ele. Não precisava dizer nada. O fedor e o barulho que o Dragão fazia, sumiram. O cavaleiro havia triunfado. Todos sabiam. Era verdade... Ele era o vencedor...

Depois o rei revelou, o fedor foi o que primeiro chamou a atenção. Depois perceberam que, em noite de Lua cheia o fedor era pior. Depois foi a vez dos gritos começarem. Até que numa noite o monstro apareceu para o rei, e disse que uma coisa tinha chamado a atenção do dele. Um cheiro bom. Que vinha do castelo. E era o cheiro do cabelo da filha do rei. O cabelo da filha do rei que era cheiroso a ponto de chegar na Lua.

O Dragão então disse que o rei devia lhe dar aquilo que não lhe deixava mais dormir de tão cheiroso. Ele iria comer aquilo, e curar o ardor em sua garganta. Ou o rei dava a filha por bem, ou o Dragão iria descer em um ano. E a cidade podia ser destruída. Foi quando o rei começou a procurar por um guerreiro, para matar o Dragão. Não achou ninguém. Ia desistir. Foi quando Jorge surgiu e fez o que fez.

E assim, o Cavaleiro e princesa se conheceram, se apaixonaram, se casaram, foram felizes para sempre.

Não! Pra sempre não! Depois de um tempo, Jorge, o grande guerreiro, morreu.

— Morreu?

— Sim. Sim, morreu. Levi... Levi; entenda: as pessoas não são eternas. As pessoas morrem. Um dia as pessoas morrem. A gente precisa entender que a vida é assim. As coisas são assim, por mais que seja ruim. Pessoas morrem, e outras nascem. E é assim que a coisa é. O rio tem que seguir. Mas isso não é tudo. Se preocupe não. A vida não acabou. Teve gente pra continuar a linhagem. O cavaleiro teve filhos. E esses filhos tiveram filhos... Filhos... Filhos... E esses homens, filhos de Jorge, seguem honrando o nome desse guerreiro.

O nome dele, como o Dragão disse, nunca foi esquecido. E os filhos do cavaleiro ficaram espalhados mundo afora. Eles são capazes de espantar qualquer mal. Mesmo que volte a aparecer um Dragão na Lua. Vai urgir um guerreiro Jorge que matar esse Dragão. O Jorge vai salvar o mundo. Os monstros vão ter que pensar bem antes de quererem aparecer!

Ao fim, antes de anunciar o final da história, Vitor percebeu que seu irmão já tinha dormido. Finalmente. Finalmente, o menino menor, o caçula, a fera indomável, estava agora traquino, tranqüilo.

Enfim, fim do problema. Agora sim, fim. Fim do fim do dia... Estava acabada a missão do menino maior. Acabara a segunda batalha épica. Do garoto, de garoto promovido a homem. Homem... Batizado nas águas frias do chuveiro sem ducha em um dia qualquer.

Enfim, o homem da casa entendeu a sua importância. Sorriu... Tinha conseguido. Sorriu, então, aliviado. Sorriu e compreendeu que quando se perde algo, se ganha algo. Entendeu que, melhor do que ser o que se é de imediato, no momento da perda, é aquilo em que o ser se pode transformar, no instante porvir.

Entendeu o que é ser potente, o que é poder fazer alguma, o que é ser alguém importante para alguém importante. Entendeu que há força no fraco. Uma força futura, estranha, invisível, capaz de transformar qualquer coisa ou pessoa em algo melhor. A força do poder ser.

Mentalmente aferrado desse pensamento incompreensível, Jorge Vitor é agora o dono do mundo. Não temeu nada mais. As prospecções, anteriormente vilãs, eram agora positivas. Sim, a nuvem estava passando...

Relaxou... Sabiamente sorriu...

Agora, era hora de mover-se. Carregou o irmão, e pôr na cama. Tirou-o do sofá e colocou-o na cama. Assim que retornou à sala, aprovado com louvor por si mesmo, deu de cara com a mãe.

Comunicava-se com ela em silêncio, a movimentos rápidos e sincronizados: tudo bem, tudo bem. Dona Julinha obedecia. Como se poderia imaginar aquilo? Jorge Vitor, o até então inexpressivo, agora manda mãe calar. E ela obedece. Novos tempos...

O guri ocupava agora o lugar do pai. Lentamente o braço esquerdo estirou-se. Maravilhado com o que promoveu, Jorge Vitor sorriu e mostrou à mãe a sala arrumada. Ainda bem que ela chegou tarde aquele dia. Conseguiu...

Faltava o final. Novo sinal manual. Apontou o quarto. Repousava lá, na santa paz divina, o tesouro da casa. O corpinho deitado na cama em meio à meia luz. Era o menino Jorge Levi que dormia o sono dos anjos. Agradeciam, rezavam pelo pai do céu. A mãe assentiu orgulhosa.

Jorge Vitor amava ver o irmão dormir. Desejava que os sonhos do pequeno se realizassem e nada mais. Que ele se tornasse o tal guerreiro destemido, que combatia seu inimigo invisível mais cedo. Que ele conquistasse a si, a sua mente, a família, o a vizinhança.

Nos olhos do Jorge que sonha acordado e projeta futuro de luzes, o Jorge que dorme cresceria bastante, cresceria tanto quanto o da história anteriormente narrada. Com certeza um bando o reconheceria com'Ogum grande caçador, como um grande protetor dos artesãos. Aquela grande criança, aquele grande pequeno seria, com certeza, grande enorme nome no Brasil.

Seria chefe dos escoteiros, líder de cavalaria. Adorado pelo exército, seria eu nome. Aquele pequeno corpo, aquele pequeno Jorge, o leve Levi levaria e elevaria sua imagem e nome a símbolo de uma linda e bela cidade maravilhosa, assim como é São Sebastião.

Ganharia o mundo com seus pensamentos e artes. Quem faz de mural a lua, o céu seu é seu limite; o mundo é coisa pouca. Atingiria a Etiópia com seus super poderes; colonizaria a terra dos colonizadores. A grande rainha da Linda-terra e sua capital o teriam também como protetor. Serviria a Sérvia o Montenegro ao nosso garoto. As irmãs, Geórgia e Lituana, lembrariam seu nome em oração e casas de reza. Por Barcelona, por Gênova, pelo Régio da Calábria, por Moscou, seria ele lembrado e aclamado, jamais esquecido.

A capital da terra do cedro verde em bandeira pediria sua proteção em oração, e seria, sem dúvida, ouvida. Verde era esperança na renovação, posto envolto em branco, a paz necessária para o desenvolvimento de qualquer nação. E o branco, a paz, em centro das duas tarjas vermelhas, era o sangue de quem protegeria o futuro da nação a todo custo.

Pois se era aquela casa uma nação, filho e mãe iriam sangrar para proteger aquele pequeno. Iriam, ambos, resistir duros feito carvalho. Beirute ergueria uma Catedral Ortodoxa em seu nome, um templo que venceu um terremoto, um tempo da Ressurreição. Aquele garoto ganharia o mundo, inspiraria o artista morto em vida e o faria reviver, pintor renascido dos Santos, o homem que em sete dias pintaria quadro da própria vida e o set da própria morte.

Os olhos da certeza do sucesso miraram o futuro fruto. Jorge Vitor não sabe, mas ele também se destacaria no mundo. Seria esperança das famílias em conflito. Seria exemplo para pais, mães, e filhos. Seria ele, mesmo que sem saber, o menino da capa verde, destaque na vizinhança. Uma mãe ainda em gestação também se inspiraria nele.

A mãe, orgulhosa, nada mais dizia. Apenas olhava o mais velho olhar o mais novo dormir. São Jorge, Levi e Vitor. A mãe, calada, só chora. Silêncio de paz que domina o lar, e como ela não conta o conto, conto: são Jorge. Ambos os Jorges, vitorioso e leviano, tal como o pai.

Foi aí então que filho e mãe entreolharam-se. Os quatro olhos, marejados, encontraram-se, e permitiram-se observar-se sem nenhuma defesa. Era chegada a hora de chorar. Então choraram; no vão não em vão. Quatro olhos que há dias tinham tanto tentado negar do choro, hoje aceitam, com resignação feliz os seus destinos. Não adiantou fugir. Não adiantou...

Lágrima, fina e saudável; final inevitável. Se não pela dor, pelo orgulho, pela felicidade. Caminhos diferentes que levam ao mesmo desfecho... Da emoção à flor da pele que nunca seca. Não havia mais o que fazer. Então, chorosos e orgulhosos, mãe e filho, agora felizes, permitem-se.

O mais novo homem da casa do mundo sentiu-se o maior de todos, aceitou-se com humildade e orgulho. Afinal, garantir o sono tranqüilo da mãe, e do irmão, com uma só história, não tinha o que pagasse.

Sim. Mas, não! Não teve tempo de comemorar. Já era hora de dormir. Era hora do merecido sono dos justos. Amanhã seria outro dia duro. Amanhã seria mais um dia de trabalho. Amanhã; dia de batalha.

Amanhã; dia de guerra.

Amanhã; dia de luta.

Dia de Jorge.

Pra sempre.

Vitorioso.

Salve...

Jorge.

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