quinta-feira, 8 de julho de 2021

X

 Bote cinematográfico. O predador captura a presa e: choque! Surpresa! Pancada! Tome-lhe, tome-lhe, tome-lhe um, dois, três bananões ao pé do ouvido e sacudimento de corpo na sequencia. Evolução ao esgoelamento, reboque e espancamento à luz do dia. No bate rebate nota-se o ferimento na orelha, causado pelo relógio de aço. Todos olham; ninguém interfere.

Do campo para o beco haja chão pra subir debar'de pancada. E sem parar, e onde pegar, pegou. Cena de terror gratuita a luz do dia que todos assistiam. Quem não estava na rua, eram chamados e logo saíam às portas, as pencas, as pestes. Ziguezagueando entre os transeuntes ambos entraram no beco.

Depois de alguns metros de caminhada eles deram de cara com a porta de casa. Estava fechada. Azar do menor! O "entra porra!", seguido do arremesso de corpo abriram a porta, natoralmente. O menino-aríete nem bem caiu no chão da sala e já foi suspenso, pelo pescoço, e tome-lhe. Tome-lhe, tome-lhe, tome-lhe. Tapas, tapas, e tapas a moda onde pegar pegou.

Estava só começando. Choque! Surpresa! Pancada! E saraivada de socos. Nas costas; nas coxas, em todo lugar.

— Para de chorar!

Dona Regina, a mãe rebento arrebentado, assombrou-se com aquilo, que era tudo, menos uma surra.

— Regina! Saia da frente!

— Não! Não vou sair. Isso é jeito de bater nele?

— Giovane! Volte que não acabou.

— Giovane! Fique aqui.

— Regina! Sai da frente!

— Não! O que foi que ele fez? Parece que ele cometeu um crime, disse a mãe mostrando calma onde não tinha.

— E não cometeu? Reinvestiu o pai contra a dupla encurralada.

— Não, não cometeu.

— Não?

— Que eu saiba não.

— Então o que é isso aqui? E o movimento de Gilvan fez a sacola vomitar um par de chuteiras, com um par de meias, enroladas, escondidas uma em cada pé do calçado novo recém batizado pelo barro.

— Calma; Gilvan. GILVAN!

— Calma não! Eu vou matar ele. Giovane, você é um homem morto!

Regina sabia, não existia situação pior do que quando Gilvan estava certo por que era aí que ele perdia a cabeça. O inferno instaurou-se na sala, com ele investindo com determinação de um felino em capturar a presa. Os olhos e testa brilhando no vão escuro. Tome-lhe carga na esposa, que intercedia, como redentor, braços abertos e mãos em formas de "C", algemando-o. A cada tentativa de soltura, a mãe reposicionava os pés, adaptava as mãos em forma de pinça, refazia a pulseira da salvação.

Por causa das lágrimas de Regina, o peito de Gilvan já ardia em brasa. O rosto da mãe, por momentos, roçava por entre os peitos dele. Na maior parte do tempo, porém, quando ela precisava falar ou respirar, era o cocuruto que deixava ali. Fazia isso para poder olhar cada movimento dos pés do seu então oponente. E a cada mudança do marido, ela fazia as adaptações necessárias, e continuava a resistência.

A única carta que Regina tinha na manga era o conhecimento do senso de justiça de seu marido. Ela sabia que ele queria se soltar sem machucá-la, e era por isso que ela o encarava, entrelaçava os dedos nas costas do touro, e pedia a tudo de mais sagrado que aquilo terminasse logo. Mas uma hora a hora H chega, e ela, enfim, chegou ao limite. Em um instante de vacilação, folgou a amarra, e o marido, constante lutador, desvencilhou-se rapidamente, deixando-a cair no sofá, sentada.

Gilvan iniciou a marcha em direção ao filho, que transpirava medo. Ele não fugiu, deixando-se capturar em dois tempos. A mão em forma de punho cerrado estava içada ao ar, quando...

— ACORDE GILVAN! SEU IDIOTA! Você acha bonito isso? Você tá dano de mão fechada no menino. Os vizinho querem mais é ver você matar seu filho destá. Pedi socorro, ninguém ajudou. Mas quando você matar ele, eles entra. E aí é que vai ser: pai preso e filho morto.

Regina soltou o verbo, e ele parou. Ele não ia deter-se, mas seguir em seu intento depois de alertado o deixou desconsertado. Responsabilidade demais agir depois de ser avisado. Analisou em torno, sentiu o silêncio dos curiosos do lado de fora. Ficou imóvel, na sala quente. A mãe, chorosa, tomou lentamente o filho das mãos do pai. Abraçava e afagava a cabeça do herdeiro uma; duas vezes. "Calma, calma".

Na sala de ar irrespirável de tão quente Gilvan decidiu-se. O povo queria, teria, mas não veria a surra. Iria tirar deles o prazer da visão fechando a porta. O filho seria exemplado, os abutres teriam porta na cara. Ofendido com a tal impunidade, Gilvan ainda sentia o gosto amargo na boca e aquilo pedia por remédio. Porém, ao mudar de direção e rumar para a porta, tudo mudou.

Choque! Surpresa! Pancada! Gilvan foi surpreendido por algo que lhe riscou a vista no meio da multidão e lhe deteve o espírito. Algo não, alguém. Alguém, com certeza, passou na porta, sem se importar com nada do que acontecia ali.

Passou hayai! Não deu pra ver. Gilvan paralisou-se. Neste mesmo momento, a luz do sol incidiu na porta de casa. Afinal, o que era aquilo que lhe riscou os olhos, da esquerda para a direita, roubando-lhe a vontade de se mover? Nascia, na cabeça fechada e escura de Gilvan, a luz da esperança, que ganhava capilaridade tempo a tempo.

Estranhou a situação. Todos na rua queriam vê-lo arregaçar o filho, e aquela figura passou ali sem reduzir velocidade nem olhar pro lado. Gilvan saiu, parou no meio da multidão, aglomerada em sua porta. Um sorri amarelo, outro chama na casa ao lado, outros fingem auxiliar o socorro. "Grávida passando mal". Ignorando tudo e todos; olhou para frente e fez a grande descoberta.

Era o garoto da casa mais a frente. Usava jeans (bermuda), chinelo de dedo, e um colete verde que, com exceção da cabeça, cobria-lhe a metade superior do corpo. Era o trabalhador brasileiro fazendo, literalmente, valer seu dia. O vizinho de frente observou a observação de Gilvan, em silêncio, e em dado momento ambos olharam-se, e perceberam-se percebidos um pelo outro em admiração a um homem menor. Constrangeram-se.

— Rapaz... cuspiu Gilvan, tentando iniciar um diálogo e fingindo não querer iniciar um diálogo. É domingo, e o garoto trabalhando.

— Não, rebateu o anônimo, ele está voltando de ontem de noite.

Gilvan ouviu tudo sem tirar o olho das costas do trabalhador brasileiro e balançou a cabeça, assentindo respeito. Contudo não deu tempo de ensaiar a falsa emoção, porque logo veio a segunda paulada.

— O quê?

— Isso que você ouviu. Ele cuida do irmão também. Ouve queixa de vizinho, leva pra escola.

Foi à conta! Gilvan voltou para casa em silêncio, envergonhado. A tapa sem mão lhe desnorteou. Tinha uma pedra na garganta. Sentou-se no braço do sofá, olhou a sala, com uma mão em cada joelho, as pernas escancaradas. Ficou ali, silencioso. O que estava fazendo? O que estava acontecendo? Estava cansado, cansado de tanta babaquic-

— GILVAN! Tá falando sozinho! Tá dormindo? Ou delirando? Acorda criatura. Regina, com olhos nervosos, chamando. Gilvan, você está chorando...

— Que chorando o caramba! Regina! Você tirou minha autoridade! Quero ver como vai ser quando ele estiver aprontando de novo.

— Fale com ele, Gilvan.

— Que falar o quê! Do jeito que eu estou aqui, se eu pegar, até em baixo da unha ele vai tomar pau. Tenho nada pra falar.

— Mas ele que falar com você.

Depois da rápida saída do garoto do quarto para a sala, pai e filho estavam frente a frente. Não importa se se descobriu vida em outro planeta; se Jesus Cristo está de volta, curando alguém na casa ao lado. Regina não tira os olhos deles de jeito nenhum. O sentimento de incômodo amainou-se depois que ela viu os olhares leve do pai, e determinado do filho. Depois daí ela sentiu que o tão impossível final feliz parecia querer chegar.

— Diga o que você quer. Pode dizer...

— Pode ficar tranqüilo meu pai! Eu decidi que eu vou parar!

— Rapaz... Pra mim você...

— Não. Meu pai...

— Silêncio! Agora eu é que vou o que eu decidi. Eu decidi que você vai fazer o que você quiser fazer de sua vida. A vida é sua, quem sabe é você. Faça o que você quiser. Eu assumo o risco.

— Tudo bem! Mas eu sei o que eu tô falando!

— Não! Quem sabe o que está falando, aqui, sou eu.

— Eu sei, meu pai, mas...

— Não...

E começava nova discordância entre pai e filho. Engraçado: mais cedo defendiam posições contrárias. Agora, depois de refletir, ambos mudaram, e defendiam posições opostas. O pai agora defende o que o filho defendia mais cedo, já o filho defende o ponto de visão anterior do pai.

Estranho: não se entendiam, por mais que quisessem. Mas mais importante de tudo era que se amavam; que se percebiam como continuação um do outro; e tinham intenção de se preservar.

A cena era, feliz e infelizmente, engraçada. Se brigavam antes por egoísmo, agora brigavam por empatia. Brigavam até para fazer as pazes, tem cabimento um negócio desses?

A maluqueira continuou e foi, mais uma vez, choque, surpresa, pancada. E Regina ficou ali, feliz da vida, sem nada dizer, contemplando a tolice dos homens da casa. Jamais enxergariam o verdadeiro xis da questão.

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