quinta-feira, 8 de julho de 2021

Pointer

Observem! Neste exato momento, uma família está sentada à mesa, almoçando. Sempre fazem isso sábado. E debaixo dessa mesa está nada mais nada menos que um cão, melhor, uma cadela, criatura nunca tida como importante, mas que hoje será peça chave de toda questão.

Qual maior importância um animal pode ter em uma trama? Respondo essa pergunta com outra: o personagem principal merece ou não maior destaque no desenrolar dos fatos? Sim, sabemos todos nós.

Agora a pergunta bombástica: e se, antes de ouvir o causo, você soubesse que o narrador é, na verdade, ela, a cadela, o que você faria? Pois morra, se respondeu morrer, porque, por incrível que pareça, essa é a realidade da qual ninguém pode fugir meu bem: eu sou ela, a cadela narradora. Aceite os fatos. Não gostou? Pois morda os cotovelos que passa.

Sou Poli, cheguei nesta casa envolvida num pano que, por acaso, era a camisa do Colégio Polivalente. Daí o nome, Poli. Eu só soube disso grande. Com o passar do tempo, aprendi que tudo que é Poli é mais. Testemunhei a vida escolar de Débora, vi as separações de sílabas, onde as palavras maiores eram chamadas de polissílabas. Dificuldade no ginásio, com os temidos polinômios. Por isso, entendi que nasci e fui batizada para ser mais e melhor que os outros cães.

Conversa vai, conversa vem, aprendi, de orelhada como sempre, o que é ser valente e amei ouvir aquilo. Foi aí que fechei a conta e decidi: se Poli eu já era por batismo, valente eu seria por determinação e esforço. Estava decidida, eu seria a cadela Polivalente. Foi assim que eu comecei a me tornar a cadela anti-social.

Peguei rápido o jeito de todos da casa; dei as respostas que precisavam, por isso sou amada por todos. Sou quieta e silenciosa com D. Lurdinha, porque é assim que ela é. Fico deitada na cozinha enquanto cozinha. Ela me acha companheira por isso. Lucro duplo: deitar, sentir cheiro de comida gostosa, e ser amada no final. Dona Lourdes, coração sem igual.

Também sei ser fiel e, até hoje, espero em todo fim de tarde seu Mauro chegar do trabalho. Antes fazia festas absurdas, com direito a xixi. Só ele tinha direito ao xixi na festa de reencontro. Hoje não precisa mais. Virei xodó. Não saio do portão enquanto ele não chega. Ele diz que é isso que o faz gostar mais e mais de mim a cada dia. E eu aqui, quieta em meu canto, fingindo que não sei de nada.

Correr e pegar sandália. Bastou para Jonatas se derreter. Quando saía com ele para fazer "as coisas" na rua, obedecia somente a ele. Amigos também jogavam. Ignorava, mas eu pegava somente a sandália dele. Funcionou. Hoje, quem compra a minha ração é ele, ainda tem briga se outra pessoa o fizer.

Já com Débora o caminho é outro, o segredo é o silêncio, nada de euforia. Me aproximo abarulhando somente com minhas unhinhas tirintando no piso. É assim que ela fala: "unhinhas". Chego ali de mansinha, como quem não quer nada, e me deito perto do pé dela. Pouco tempo depois, dedos do pé começam a coçar as minhas costas, minhas orelhas. Fico de barriga pra cima, facilito o paparico. Ela larga os livros, vem me alisar, falar um monte de coisas sem sentido com voz fininha. Depois, volta aos estudos. Hora de sair. Voltar, só a noite. Assim passei a dormir no quarto mais cheiroso da casa.

Não se engane você, porém, com a boa prosa que sai da minha boca. Sou diva, sim, mas só com a família. Com estranhos o procedimento é bem outro. Se tu se faz perdiz, me transformo em sua natural predadora. Os vizinhos sabem como é que a banda toca: aqui, vacilou, dente passou.

Calcanhares, panturrilhas, glúteos vivem por aí, aos montes, com as minhas assinaturas caninas pelas redondezas. Sei também que é exatamente por isso que eles me odeiam, e eu adoro isso, adoro que me odeiem. Mais gosto e menos arrependimento na hora de decidir entre fazer ou não fazer a minha próxima vítima.

Eu não tenho dó, e explico o porquê: é que o ser humano é, disparada, a espécie que eu mais odeio. Sentem-se no direito de fazer o que bem querem e entendem, e quando a resposta vem, reclamam. Não aceitam que para cada ação há uma reação, e não querem nunca arcar com as consequências do que provocam.

A casa é nossa, o pé de carambola está aqui em nosso quintal, tem uma cachorra nesse quintal, então por que invadem? O que-que eu posso fazer, se estou lá para guardar a área de estranho, e um estranho entra no local? Eles não me davam opção, e eu me sentia constrangida com a situação que eles me metiam, comigo tendo que fazer o que eles me obrigavam a fazer. Eu me via obrigada a ter que morder pessoas. E no fim, eles reclamavam.

Depois das dezenas de audiências aqui na porta, com choradeira de guri, e reclamação de mães aqui na porta, veio o desfecho injusto. A essas alturas, já corria o boato de que iam me envenenar, então a família cedeu à poda da caramboleira. Por isso, eu passei a dormir dentro de casa, e o número de incidentes diminuiu a quase zero. Era chegada a insuportável fase da eterna calmaria. Eu odeio política, também…

E foi no tempo da paz sem emoção e eterna reflexão sem graça que eu lembrei do que um dia ouvi da boca de D. Lurdinha que "quem não vive para servir, não serve para viver", e confesso que entrei em parafuso, aquilo me atingiu. Por mais que eu não quisesse, eu comecei a me ver cercada por todos os lugares, a todo momento, pela pergunta que não queria calar: qual seria, então, a minha serventia, depois do fim da fase de guarda-quintal da casa?

Pior: qual seria o papel do cão no mundo atual? Foi um mergulho profundo no mundo da introspecção. Pelo que sei, começamos a acompanhar os homens nas caçadas, depois fomos viver em casas. História da minha raça passa por aí também. Somos ótimos cães de companhia, somos elegantes, inspiramos produções de imagens. Sei. Mas, apesar da beleza, eu sei que nossa raça construiu fama foi caçando, não foi sendo bicho de pelúcia que respira não. Fase boa, nossa raça caçava aves, junto com os humanos, pena que acabou.

Fui da reflexão à conclusão: já que saímos da caça e patrulha, façamos, ao menos, às vezes do bom vigilante. É o mínimo. Se assim não o fizermos nem isso bem, então já é hora de arribar de de junto do dono de uma vez. Mas eles, os cachorros de hoje em dia, não pensam assim.

Aliás, eu sinceramente nem sei se os cães desses tempos pensam em qualquer coisa que seja. Estão todos felizes. Caíram na felicidade trazida pelo eterno comodismo. Revoltante. Morreram em vida. Por isso eu os odeio com todas as minhas forças.

Aos gatos também dou com prazer uma fatia do meu ódio desvelado. Se vejo um, ele logo se perceberá diante de um inimigo. Contudo, pontuo meu respeito, sim senhor. Diferentemente dos cães, os gatos ainda caçam. Por isso admito que odeio muito mais os cães do os gatos. Cheguei a saber por aí que tem cachorro que nem mais latir, quer! É o Apocalipse!

Até que dia desses estava sob a mesa igual estou agora, sem pensar em nada. De repente, um pensamento ruim me chegou à cabeça. Pensava em cinza, lama; limo. Pêlo molhado podre, também. Ergui orelhas, mas não peguei nada, nenhum barulho. Entrei no modo de busca, alterei o olhar, não vi nada, nada na minha frente. Somente quando espirrei foi que tomei consciência, e reordenei meu modo caça, relembrei que cão primeiro tem que focinhar, depois é que ouve e visualiza.

Então, focinhei, e logo descobri no ato o que era o tal pensamento ruim: um fedor, um fedor de rato de esgoto. Pointer de caça para ele. Em marcha, ao portão, ouvi o chiado, só faltava ver o miserável. Em meio à agonia e êxtase soltei, precipitada, dois latidos, foi meu erro. O rato estava próximo e eu não vi por causa da placa de alumínio soldada ao pé do portão para evitar respingos de chuva varanda. Espantei a presa! Que falha de conduta básica na arte da caça. Realmente, eu tinha enferrujado…

O rato grande me viu. Meia volta. Ia fugir! Por sorte alguém o viu e me viu desembestar em latir. Veio então a mão aliada e "clique". Saí pelo beco. Como errei antes em fazer som, dessa vez eu seguia silenciosa, concentrada. Não latia, nem rosnava como sempre faço quando saio para socializar com os queridos vizinhos. Vi o rato rumando para baixo de um banco. Algo tão podre e indigno quanto o rato estava no banco onde eu caçava a minha presa. Parecia ter medo, mas ignorei, porque não gasto dente vítima que não pode correr.

Parei frente ao banco de cimento e assim estávamos nós, quadrúpedes, frente a frente, prontos para finalizar o embate. Encurralado, o roedor mostrou os dentes. Esperei imóvel, estava tudo na cabeça. Simularia o golpe e esperaria a resposta. E quando ele atacasse, eu recuaria e avançaria, num bote rasteiro, rápido mais-que-rápido, na velocidade de um flash, e isso tinha que acontecer assim que acabasse o golpe dele. Depois era só abocanhar lateralmente e sacudir, sacudir até sucumbir. Estava para começar.

Começou. Simulei o ataque. Ele respondeu, atacou. Recuei. Não foi a chance adequada. Aí ele atacou pela segunda vez. Com vontade. Pulou, saiu do chão. Minha vez chegou. Era abocanhar, não largar, sacudir, sacudir, sacudir. Meu sucesso e minha vida dependiam da precisão do meu ataque.

Ratos costumam morder focinhos de cachorros afobados ou inseguros, que afrouxam depois da captura. Já ouvi comentários de predadores que viraram presa num passe de mágica. Comigo mesma não, ali ia ser cate, abate, xeque-mate. Ele flutuou, não tinha como fugir.

Mas, na hora h, algo me surpreendeu; me atravessou a vista. Mas mais do que a minha vista, esse objeto estranho atravessou também o corpo do rato. Eu nem vi o ataque. Me assustei com o flash marrom que me cruzou a visão, travei, quando voltei a mim, o rato já estava abatido. Em fração de segundos, antes de terminar já estava terminado, por conta de uma ação terceira, extra cenário. Olhei para trás e vi a poderosa arma de abatimento, que segundo antes era um trovão veloz ao meus olhos.

Aquilo era um pedaço de pau com ponta. Uma lança improvisada. Um garoto empunhava aquilo. Um guerreiro. Com lança, espada, escudo e tudo. Montava um cavalo com cara de burro. Capa e capacete... Gostei dele. Roubar minha presa – surpresa – não incomodava. Pelo contrário, aquilo que eu sentia era muito bom.

Estava eu, enfim, explodindo de felicidade e emoção. Enfim, eu tinha encontrado um ser humano com espírito combativo, igual o meu, como deveria ser. Me senti como se estivesse na época antiga, junto de meus antepassados. Não me fiz de rogada e homenageei o guerreiro, era uma honra para mim ser escudeira daquele ser magnânimo, esplendoroso ser só por sua existência.

Pointer de companhia para ele. Um latido. Dois. Três. Baixei a cabeça, ele me tocou, estremeci. Êxtase puro. Sentava levantava abaixava deitava, gritava silenciava. Fazia tudo isso ao mesmo tempo.

Confesso que até aquela verdadeira vontade de fazer xixi veio, mas, segurei a onda. E se um absurdo desses cai no ouvido de seu Mauro? Como era que eu ia ficar?






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