quinta-feira, 8 de julho de 2021

Roupas & Armas

Depois da tragédia, família Boa Morte mudou. A mãe teve de sair da costura e corte para ir trabalhar em casa de madame. Os filhos, quase todos, tiveram de voltar para São Felipe. Os dois mais novos foram os que ficaram e também tiveram suas vidas mudadas. O menino mais velho ficou rapaz, garoto de boa índole, e trabalhador.

O caçula está reencontrando o caminho de criança, depois da crise. Está cada vez mais solto, e é por ter ele tempo e espaço o suficiente para rumar e arrumar irritação é que essa historia existe. Esta condição tem deixado Dona Julia nervosa. Absolutamente compreensível para aqueles tempos e aqueles termos. Aquelas ações, diversões e situações na periferia nunca terminaram bem.

Para piorar, com o passar dos dias, uma suspeita de cabeça de mãe ficou cada vez mais evidente: Levi estava fazendo algo. E o pior era que ninguém na casa sabia, ainda, do que se tratava. Não se sabia o que; como; por que; para que; nem de onde se tirou tais idéias, nem o que lhe inspirou. Mas, pensa a mãe, o que parece é que após ver ou ouvir alguma história o menino mais novo inventou de inventar.

A primeira coisa estranha que perceberam foi a ideia lata. O menino, sem quê sem pra quê, resolveu reabilitar o antigo chinelo de dedo. Se a viagem fosse usar calçado velho tudo ok, a maluquice seria normal. Problema foi que o pequeno, depois de já ter testado duas de cerveja, coletou duas latas de sardinha e calçou-as. Depois de amassar, e dividi-las ao meio, obteve a grande descoberta do calçar; caminhar; cá, cá, cá. Cavaleiro em pé e marchando.

Atenção fiéis, olhos nos pés, e nota dez. Lata de cerveja: perigosas nas corridas. Lata de sardinha: sem riscos de corte, invisíveis. De quebra, o sonhado barulhinho, o barulhinho bom, barulho imaginado. Sonzinho no tom, barulhinho encontrado. Era Levi, que era leve e era livre. Viva infância. Pés no chão, cabeça nas nuvens.  Deus, abençoa guri titã.

Livre ainda da vida de adulto, menino menor partiu em busca da realização, após idealização. transformação. O pedaço de pau: uma espada. Serrado ao meio, o mini-bastão, casado com um pedaço de garrafa de refrigerante cortada acima da metade, transforma-se em espada. A intenção determinava, mesmo sendo tudo madeira e plástico, fronteira entre lâmina e cabo. A partir da boca da garrafa tinha-se a maior parte de madeira a mostra. Era o que correspondia à lâmina.

Para baixo, onde estaria o corpo da garrafa, tinha-se um pequeno espaço. Era o cabo. Coberto por uma pequena parte do corpo da garrafa que foi, propositalmente, mantido. Aquele pequeno casulo plástico em verde servia como o protetor da mão do destemido guerreiro. Que capricho. Aquele era o instrumento de maior valia de qualquer guerreiro, e aquela era uma obra a prova da estupidez humana. O pobre sofre, mas pode-se nobre.

No plano de fundo da feira de domingo, o pano imundo, jogado, encardido. Encardido, porém ainda vermelho. Mais cedo, objeto; agora abjeto. O agora podrido, mais cedo, abrigo. Ao meio dia, o saco de alinhagem, a morada de laranjas, é lixo agora e nada mais. Saco passa a ser lixo à medida que esvazia. Lixo é lixo. E quem cata é gari. As vezes...

Com esse menino é diferente. As coisas mudam. Olho bateu na peça imunda; imagem inunda, na cabeça que é um mundo. Inunda, enxurrada de idéias. De visões. De divisões. Provisões e previsões. Premonições. Saco de laranja morreu. Aquilo era uma capa.

O problema eram os adultos, como sempre burros demais para perceber. Daí a lançar-se ao movimento é um pulo. E os adultos. Um alerta ao feirante. Um garoto pegou algo.

— Não! Foi só um saco vazio... Ele me pediu...

E fim. Missão cumprida. Jorge Levi é agora um quase-cavaleiro.

Só mais tarde, testando nova peça da indumentária, percebeu sofrendo na própria pele as conseqüências da imprudência e imperícia que foi a não-lavagem daquilo. Uma; três; vinte e três picadas. Vinte e três surpresas desagradáveis. Elas, as terríveis formigas. As vermelhas, as piores. As malditas. Estavam na capa. O resultado é o corre-corre. E a volta para casa. Dor, ardor e gritaria. Cautela é preciso.

Belo dia, voltando da Escola, surpresa. Não se sabe se por sorte; por azar; por acaso, ou se por mero capricho do destino. Mas, o garoto encontrou o que julgara ser objeto de seus desejos. Tratava-se de nada mais nada menos que um velotrol. Um simples veletrol sem rodas. No latão do lixo, vazio. Que sorte! De repente, tudo mudou. O dia comum como um dia qualquer, transformou-se no dia qual quer realizar-se sonho da vida.

O tal do objeto em si não importava. De estar no lixo, também não importava. Estava no lixo e lá iria permanecer. Era até bom – não ia precisar pagar. Por estar sem rodas tampouco se ligava. A cabeça. A cabeça em forma de cavalo, sim, era o mais importante. Na verdade era um burro. Também não importava. Era tudo de mais especial que aquele objeto poderia ter, a cabeça de animal de montada. No momento nada era mais importante do que aquela cabeça de cavalo atirada fora.

Luxo e lixo vão a forma de ferradura. Estão sempre afastados, mas juntos, também. Mais uma vez a mente-mundo do menino menor de Dona Julia funcionou. Iria precisar daquilo. Destino traçado. Cabeças unidas. Estranha cabeça de cavalo entrou na entranha da cabeça do menino. Lá fez morada. Aquela cabeça, orelhas triangulares como chifres, e boca de feliz impressionou o observador. Seduzido, aproximou-se, abaixou-se, tornou-se, de ato mesmo, ceifador e criador. Faria o que fosse preciso. Iria usar a cabeça sem sombra de dúvidas. Iria decapitar o inanimado. Lá foi. Era hora de todo corpo agir em função da cabeça. E assim foi: braços e pernas, pés, mãos, e dedos. Tudo junto; agindo, operando em sentido lógico. Tudo em busca de um só objetivo: trazer o herói do mundo das idéias para o mundo dos objetos. Ainda no local, a pancadas e cortes, conseguiu. Mãos na cabeça, hora de voltar.

Tais fatos foi o que pilotou o assunto da resenha com Raul. O melhor amigo de Levi, no outro dia, intrigou-se com a questão, e envolveu-se no projeto. Essa é a lei da infância. Felicidade só é felicidade quando compartilhada. Que boa notícia. A peça, tão impossível de ser encontrada, estava em mãos. Que estranho, de tão bom. O burro era agora cavalo de verdade. Mesmo os adultos teriam de admitir. A brincadeira ficou séria. O confidente, surpreso.

— Então, já está tudo pronto, disse Raul, feliz, com os dentes amostra. Silêncio. Instante de reflexão.

— Não Raul. Ainda não... Tá quase, ainda...

— Quase?

— Sim. Ainda falta uma coisinha.

— Mas o quê? O que-que ainda falta?


*

Faltam dez minutos para o meio dia, o sol a pino, descarregamento acontecendo, apesar de tudo. Homens são corpos suados e vontade de almoçar. De beber água, de beber algo. Desejos negados. Portanto ao trabalho.

Ninguém está homem feliz; ninguém diz nada. Primeiro, a obrigação. Cada um faz o seu em silêncio, e pronto. E é exatamente por isso que todos estão unidos na intenção de acabar a tarefa. E lá vem coisa. Lá vem cerveja; refrigerante; nota, para conferir. Lá vem água, não para beber, apesar da sede. De quando em quando alguém entra, confere o resultado do jogo do bicho, e sai. É bom evitar conversa com o dono do bar em momentos de cálculo e anotações, todos sabem.

Apesar de coletivo e visível, mau humor não atrapalhava os cidadãos em suas atividades-fim, na agitação normal de qualquer dia meio dia (dez minutos passara-se). Silêncio; fome, e cheiro de comida. Silêncio, carregamento de água, e sede, cada vez mais forte. Silêncio, e trabalho.

De repente bem de repente mesmo, no meio da confusão da má hora, seu Pedro pensou ter visto algo (dois vultos). Pensou ver sombras. Duas pequenas sombras, na entrada do bar. Benzeu-se de ação-reflexo – vai saber! Meio dia é hora traiçoeira. Hora que o coisa ruim está na rua. Passou com as vistas, mais uma vez, pela frente do bar. E não é que, no que foi; e voltou; pousou as vistas. E pimba, teve certeza. Não, não era miragem: havia, sim, duas coisinhas na entrada da birosca.

Dois garotos, ao pé do balcão, diante de seu Pedro, olhando-o, com cara de quem quer pedir. Problemas. Coçou as costas da cabeça. Chegada de criança nunca é bom sinal: amolece demais a mulher quando tá na barriga; só faz chorar quando nasce; desobedece quando grandinho, quer ser mandar na casa que não comprou quando cresce. E, se cai doente, é culpa do adulto. Mas que jeito? Era o filho do saudoso Zé Jorge, e de Ari. Filho de conhecido é ainda pior, que tem que atender, e atender bem.

O pior eram as caras, de querendo pedir. Seu Pedro teve uma péssima previsão sobre a prévia daquela visão. Diálogo desnecessário com menino àquela hora? Saco! Teria mesmo que ter? Ponderou. Não, não tinha. Não ia acontecer. Não ali. Não naquele momento. Ainda assim, manteve-se aprazível, quieto, e estudioso.

Silêncio.

Tinha só que se livrar das muriçocas. Buscou usar sua técnica de intimidação mais sofisticada, aplicada quando não podia aplicar castigos físicos. O olhar dúbio. Era mirar vista no meio da dupla de aspirantes a interlocutores. Nem em um, nem em outro; no meio. Esta ação faz com que os interlocutores acreditem que o observador tem o super poder de olhar duas pessoas simultaneamente. Isso faz com que as vitimas deste golpe caiam em um estado de incômodo e altíssimo constrangimento. O velho concentrou-se ali, na fresta entre os ombrinhos. Levi e Raul, inevitavelmente, cederam ao olhar intimidador.

Não podia ser diferente. Seu Pedro era implacável nesta ação. Era esse o ás que o senhor sexagenário tinha na manga, que desequilibrava o qualquer um que a ele se contrapusesse. Ás que agora dava ele larga vantagem na primeira fase, da vista, ates da primeira frase da entrevista silenciosa aos perturbadores da ordem.

Apostava que esse método de coação não gestual iria varrer dos garotos, em segundos, a vontade de interação. Foco! Foco. Os meninos congelaram, era fato. Os meninos congelaram, porém, não fugiram. Era hora de avançar ao segundo nível da ação exclusiva. Com um movimento de cabeça o senhor deu uma queixada no ar. Aquele movimento correspondia a um "é o quê?" silencioso.

Sem resposta, o silêncio, e o claro desconforto perdurava. Mais duas queixadas no ar, mais rápidas do que as duas primeiras. A intenção era falar o menos possível. Já que tinha que se comunicar com aquelezinhos, que fosse sem palavras, para não dar ousadia. E esperava a resposta dos pequenos. Não veio. Hora do nível três: ignorar os garotos a partir dali, e esperar que saíssem, uma vez que já haviam sido atendidos. Abaixou as vistas; voltou novamente a folhear, a conferir notas fiscais como se na entrada do bar não existisse mais ninguém.

Todavia, nada aconteceu. Os meninos congelaram. Continuaram ali. Estavam, sim, com medo, mas permaneceram ali, na entrada do bar. Ainda em silêncio e de cabeça baixa, o senhor avaliou o roteiro de suas ações. Primeira fase do plano, o olhar, ok. Esperou.

— A gente quer uma coisa...

— Fala.

— A gente que-

— Fala logo!

— A gente quer uma coisa que está lá atrás...

E foi aí que o senhor desviou as vistas para Jorge Levi. Era a primeira vez colocava os olhos naquele metrinho de gente. Hora do último recurso.

— Sai daqui! Peste! Vai azoar seu pai, peste! Arre.

Funcionou. Essa frase foi o fim para o menino Levi. Abaixou a cabeça, caminhou, saiu do bar-depósito. Saiu dali a não ouvir-se as passadas, murcho em marcha. Iria para casa.

Do lado de fora do depósito, depois da saída de Raul, os dois pararam a passos da porta do carrasco. Estátua Levi, estremecia, em choque, movia-se apena por correr de lágrimas. Queria apenas sair dali. Contudo, Raul, sempre frouxo, não tremia dessa. Ao contrário de amigo, que caminhou lentamente para mais longe da porta, o medroso quatro olhos asmático tomou coragem não se sabe de onde, voltou e se lançou novamente ao estômago do vão onde somente engradados, de cerveja e refrigerante, barulhavam.

Assustado com a atitude inesperada e silenciosa de Raul, Levi parou onde estava. Queria saber o que se passava, mas manteve a distância. Apenas olhava a porta. Nada notável, nem a olhos nem a ouvidos, acontecia. Curiosidade só aumentava. O que iria, o lerdo do Raul, fazer? As expectativas todas negativas, mas, quando se a intervenção se dá na intenção de ajuda não custa apostar e acreditar que o improvável aconteça. Improvável e impossível são palavras diferentes.

Por isso esperava Raul voltar esbaforido lá de dentro, um segundo depois de ter entrado, vítima de algum grito. Mas não aconteceu. Um diálogo quase silencioso iniciou-se, e se alongou. Estranho. Eles conversavam lá dentro. Era fora do real. Raul estava conversando com Seu Pedro.

Eternos seis minutos se passaram, e eis que se move magicamente por entre a porta, retangular, de madeira podre, o corpo de Raul. Ileso, era incrível. Sorridente, era absurdo. A partir daquele momento ele seria o garoto que apagou com um só ato todo seu histórico de froxura no bairro.

Para Levi, agora Raul era, a partir daquele momento, e seria, para todo sempre, o mais-mais de todos. A expressão era de feliz. E, o objeto dos desejos, pasmem, estava na magra mão do míope. Levi, incrédulo, fez desabrochar o sorriso mais belo, o sorriso com a marca da eterna gratidão. Era a tal da proteção, a proteção tão desejada.

Com a boca estirada, rindo sem gargalhar no fundo da cena, Seu Pedro balançava a cabeça positivamente. Olhava Raul e ria. Era a admissão da derrota. Que menininho ruim de ignorar. Recado dado, recado entendido. A tarde foi perfeita.


...

No outro dia era o dia D. Fim da tarde, hora da verdade. Com as adaptações feitas dos pés a cabeça, o grande herói está pronto, e montado. Nada mais faltava. O começo, boca do beco, donde desemboca quem sai e quem entra, quem se movimenta.

O céu, alaranjado por conta de um mágico sol poente de fim de tarde, que pousava sobre as casas sem queimá-las. O momento exato se aproxima. Raul está na reta-guarda. Será e terá prazer pra ser testemunha ocular dos fatos. É personagem principal da historia dele, de óculos novos. O outro vai à frente, com indumentária de cavaleiro. Hora da última conferência. Pé: sandália velha, com lata de sardinha. Espada de pau caixote, aqui. A rubra capa; arruma as costas. Cavalo, entre as pernas. Cabeça, bem ali. Cabeça de cavalo, sem discussão. Adaptação perfeita.

Tudo pronto? Ainda não. Faltava a última coisa, a última proteção. A proteção do mundo mais valioso ao redor: a cabeça de Jorge Levi. A proteção sagrada é na realidade nada mais do que uma proteção plástica da garrafa gigante de vinho barato. Proteção verde, cor da esperança. Nada podia ser mais perfeito para resguardar a cabeça de uma criança do que a esperança. O pequeno de Dona Julia era isso: esperança.

Aquele objeto estava no lugar certo. Naquela mente, sim, residia tudo isso: a esperança e a vontade de construir um mundo novo. Era um tesouro digno de ser protegido. A esperança de migrar para um mundo mais agradável, longe do cotidiano, de dor, solidão, perda.

Está agora com a cabeça em seu mundo encantado, e muito bem protegido. O cavaleiro está projetado na entrada da minhoca de ar, na boca que cospe vento. Todos olham com estranheza, o cavaleiro ignora. O cavaleiro é superior a todos, em fiel à missão. Missão bem simples: passear a cavalo, na corrida de dupla utilidade: testar o uniforme de cavaleiro; esquentar o sangue para vencer o maldito banho frio. Lá vai ele, preparado para disparar.

E START!

Saiu em disparada, sem mais, sem cessar, sem parar, sem vacilar. Saiu. Como uma bala, sem tremer, sem chorar, sem pedir licença nem avisar. Foi, como flecha atirada, palavra falada que não tem mais volta. Partiu e partiu muito bem para um simples arranque de reles menino fantasiado. O teste começou bem. Vai ele em disparada beco adentro, inalcançável.

Raul saiu atrás e ficou bem pra atrás. Ele, com alguma dificuldade, insistiu em acompanhar. Era estranho aquilo, muito estranho. Sempre foi fácil seguir o melhor amigo no mesmo pé. Naquele fim de tarde, contudo, percebeu que algo em Levi mudou. Estava diferente. Mais veloz. Verdade era que, depois de pôr o capacete, ele parecia ter se transformado em outro menino; num super menino. Haja sebo nas canelas.

Lá vai Lá vai Levi, leve-leve. Que velocidade! Percebeu isso por que viu que aos outros meninos também era impossível se equiparar ao seu melhor amigo. Era incrível a cena. Incrível! Inenarrável! Os outros garotos, ainda que pés tivessem, não o alcançava. Ainda que tivessem mãos; não o tocavam. Ainda que tivessem olhos, os garotos não o viam.

Linhas e rabadas das pipas arrebentaram-se, sem o corpo do bento amarrar. Era também invisível! E como o que não é visto não é lembrado, não o puderam; nem em pensamentos; fazerem-lhe mal. Jatos de água, de as armas de água, o corpo de Levi, não alcançaram. Invencível! E assim passou! Livrou-se, de tudo, e de todos os perigos. De todos os males. Era o incrível, invisível, invencível. Super-Levi. Vestido, com as roupas, e as armas de Jorge.

E sim, enfim, fim. Da corrida. Da missão De tarde. Saudação ao céu. A Lua apareceu! Referência! Reverência! Espada erguida ao céu. A bênção pai!

Salve Jorge.

Da Capadoce.

Da Capadoce


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